terça-feira, 25 de setembro de 2012

O último e tardio “aviso” a Jango

No dia do golpe, 31 de março de 1964, o então chefe do Estado-Maior das Forças Armadas (Emfa), general Pery Constant Beviláqua, encaminhou ao presidente João Goulart um documento que o alertava sobre os ânimos exaltados na caserna. No texto, provavelmente nunca lido por Jango, Beviláqua faz uma longa análise a respeito do quadro de indisciplina militar momentos depois de iniciada a quartelada, assusta-se com a perspectiva de implantação de uma ditadura “comuno-sindicalista” no País e dá um conselho ao presidente. Segundo o general, a única maneira de Goulart restabelecer a confiança dos chefes militares seria fazer uma “formal declaração” de que iria se opor às “greves políticas” anunciadas à época pela Central Geral dos Trabalhadores (CGT) e ordenar uma intervenção nos sindicatos envolvidos nos planos de paralisação.
Confira aqui (em PDF) a íntegra do documento.
Ambíguo. Beviláqua seria cassado pela ditadura por denunciar a farsa dos inquéritos policiais militares. Foto: Arquivo/Ag. O Globo
Beviláqua era uma figura controversa na caserna. Oficial legalista, continuou chefe do Emfa após o golpe simplesmente porque os golpistas não sabiam o que fazer com ele. Em 1965 foi nomeado ministro do Superior Tribunal Militar (STM), mas logo se desentendeu com a turma da linha dura. Em 1968 foi cassado com base no Ato Institucional número 5, o AI-5, por ter denunciado a fraude em que se transformaram os Inquéritos Policiais Militares (IPMs) da ditadura, usados para perseguir, prender, torturar e matar adversários do regime. Proscrito da caserna, Beviláqua filiou-se ao antigo MDB, única oposição permitida pelos generais, e foi um dos criadores do Comitê Nacional de Anistia.
Foi, ele mesmo, anistiado em 1979, e aposentado como ministro do STM. É pouco provável, contudo, que tenha escrito o documento de 31 de março de 1964 sem saber da movimentação golpista à sua volta. Isso porque o chefe do Emfa era o responsável pela organização e emprego conjunto das Forcas Armadas. Também era responsável por emitir pareceres sobre todos os problemas relativos à segurança nacional, além de exercer a alta direção dos serviços de informação e contrainformação militares. Ou seja, Beviláqua sabia – ou deveria saber – de tudo.
Ninguém entende quais foram as razões que o levaram a produzir um alerta a Jango, registrado num documento de nove páginas, horas depois de os tanques do general Olímpio Mourão Filho terem partido de Juiz de Fora, Minas Gerais, em direção ao Rio de Janeiro, na madrugada de 31 de março de 1964. Beviláqua morreu em 1990, aos 91 anos, sem nunca ter tocado no assunto, ao menos publicamente.
Embora tenha sempre se mantido longe da linha dura, Beviláqua era anticomunista de carteirinha e via na agitação sindical pré-1964 uma tentativa de substituição dos partidos democráticos por “ajuntamentos dominados por comunistas”, dos quais ele queria distância do governo e da República. O “espectro de uma ditadura comuno-sindical”, alertava o general, contribuiria, além de tudo, para o agravamento da inflação.
O documento encaminhado a Jango faz parte de uma papelada secreta encontrada há três meses no prédio do Ministério da Defesa, em Brasília, onde por 35 anos funcionou a sede do Emfa, extinto em 1999. Ao todo, foram achados 37 volumes encadernados classificados como sigilosos, além de 52 volumes de boletins reservados. Por ordem do ministro Celso Amorim, a papelada foi enviada ao Arquivo Nacional para ser colocada à disposição do público. Além da mensagem de Beviláqua há muitas comunicações administrativas (ofícios, memorandos, mensagens) e diversos relatórios sobre a conjuntura política nacional e internacional entre 1946 e 1991.
A mensagem de Beviláqua a Jango pode ser interpretada tanto como uma peça de cinismo quanto um atestado de ingenuidade do chefe do Emfa. O distanciamento histórico, contudo, dá a cada conselho do general um toque de ironia. Ao tratar do tema “Exame da situação militar”, Beviláqua alerta para a necessidade de impedir a infiltração de “elementos subversivos” nas Forças Armadas, pessoas que, segundo ele, “chegam a iludir a boa-fé de certas autoridades”, uma insinuação pouco sutil ao próprio presidente. O moral da tropa, avisa o general no dia do golpe, poderia ser considerado “bom”, mas apresentava-se “suscetível de (sic) bruscas variações” por causa da tensão provocada pelo processo “comuno-desagregador em desenvolvimento no País”.
Na missiva, o chefe do Emfa recomenda ao presidente que proíba as greves “políticas” e barre o avanço comunista. Foto: Dominicio Pinheiro/AE
Beviláqua cita, claro, o comício de 13 de março de 1964, na Central do Brasil, no Rio, como um evento que teve “funda repercussão nos meios militares”. E deu a dica do que iria acabar se consolidando dali a algumas horas. “Os chefes militares das três Forças Armadas, em todos os graus da hierarquia, veem com crescente apreensão o desenvolvimento da grave crise de autoridade”. De acordo com o general, “o sistema comuno-sindical-grevista, na medida em que se fortalece e amplia, torna-se cada vez mais perigoso para a segurança do País”.
Uma “República Sindicalista”, delírio comum entre os generais em 1964, diz Beviláqua ao presidente João Goulart, só poderia ser implantada no Brasil “sobre o cadáver moral” das Forças Armadas. Não deixa de ser uma ironia o fato de que, em seguida, uma ditadura tenha sido implantada sobre o cadáver moral do País. Por ingenuidade ou ideologia, o general via nos sindicalistas, e não nos militares golpistas, “inimigos mortais” da democracia, do que, justiça seja feita, iria se arrepender, poucos anos depois, ao ser cassado, entre outros motivos, por conceder habeas corpus demais quando ministro do STM.
No item “Impressão sobre a situação no que concerne à segurança interna”, Beviláqua informa a Jango que as Forças Armadas estavam, suprema ironia, “prontas a cumprir e fazer cumprir a Constituição e as leis do País, que a todos obrigam”. Mas faz uma ressalva: “Desde que prontamente seja restabelecido o princípio da autoridade e o clima de disciplina militar rotundamente abalados pelas últimas ocorrências”. E repreende Goulart por ele ter ido, na noite anterior ao golpe, receber uma homenagem de sargentos da Marinha, Exército, Aeronáutica e das polícias militares no Automóvel Clube do Rio de Janeiro.
Autor de O Sequestro dos Uruguaios, primeiro livro sobre a Operação Condor, o consórcio do terror montado pelas ditaduras da América do Sul nas décadas de 1970/1980, o jornalista Luiz Cláudio Cunha afirma nunca ter visto o texto do general Beviláqua. Depois de ler o ­documento escrito pelo general, a pedido de CartaCapital, Cunha, recentemente nomeado consultor da Comissão Nacional da Verdade, avaliou que o registro não destoa do ambiente golpista da época. “O Pery, no documento, repete o que os golpistas diziam há tempos.”

Revista Carta Capital

sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Por que sebo se chama sebo?

Por que loja de livros usados se chama sebo?

      
 
Por Sérgio Rodrigues
“Caro Sérgio, qual a origem da palavra sebo para designar loja de livros usados? Vi em uma reportagem sobre o tema que a palavra teria as seguintes prováveis origens: 1. Antes do advento da iluminação elétrica a leitura era auxiliada pelo uso de velas de onde escorria o sebo para os livros, tornando-os ensebados; 2. Derivaria das sílabas iniciais de ‘SEcond hand BOok’, termo, em inglês, para designar livro de segunda mão. Em rápida consulta na internet li, ainda, mais uma provável origem para o termo: teria relação com o fato de o livro ser manuseado constantemente, o que deixa os volumes engordurados, ‘ensebados’.” (Bruno Corrêa)

A menos que algum estudioso desencave um documento de época que nunca veio à luz, a consulta de Bruno não tem uma resposta definitiva, do tipo que se possa escrever na pedra. Sebo como sinônimo de alfarrábio, ou seja, loja de livros usados, é um brasileirismo que surgiu informalmente, a princípio como gíria, e sobre sua origem tudo o que há são especulações. Isso não nos impede de, por eliminação, chegar a uma resposta provavelmente correta, como veremos adiante.
Primeiro, vamos às eliminações.

A tese do SEcond-hand BOok me parece mais falsa do que promessa de candidato a vereador. Talvez fosse defensável se houvesse em inglês, mesmo que apenas num vilarejo esquecido do País de Gales, a palavra sebo com o mesmo sentido, mas não há. Seria necessário imaginar a existência em algum ponto da história de um estabelecimento comercial brasileiro, anglófono e com peso cultural suficiente para dar origem a uma acepção popular – e do qual, apesar dessa popularidade, não restasse registro algum. Na seara da etimologia fantasiosa, que agrada a tanta gente, prefiro a tese que deriva sebo das iniciais S.E.B.O., isto é, Suprimentos Econômicos para Bibliófilos Obsessivos. Soa melhor, não soa? O único problema é que acabo de inventá-la.

A história da velha vela de sebo que escorre sobre as páginas não chega a ser exatamente delirante, mas também reluto em comprá-la – mesmo a preço de sebo. O maior problema aqui é cronológico: tudo indica que a acepção livreira de sebo entrou em circulação em meados do século 20, quando a leitura à luz de velas já era história antiga.

Há quem cite ainda, para acrescentar à confusão uma tese não mencionada por Bruno, o caminho erudito que o etimologista brasileiro Silveira Bueno encontrou para explicar o sentido da palavra “sebenta”, que em Portugal é sinônimo de apostila, caderno de apontamentos das lições dadas em sala de aula. O estudioso foi buscar a origem do termo no português arcaico “assabentar”, isto é, instruir, o que é interessante. Mas Silveira Bueno em momento algum sugere que se recorra à etimologia de “sebenta” para explicar sebo. Além do fato de a primeira palavra ser portuguesa e a segunda, brasileira, apostilas usadas nunca foram itens característicos de tal tipo de comércio.

Resta de pé, assim, a hipótese mais simples: a de que essa acepção de sebo (do latim sebum, “gordura”) tenha surgido como metonímia brincalhona a partir da ideia irrefutável de que livros muito manuseados ficam ensebados, sujos, engordurados. Com poucas exceções, a simplicidade costuma ser um bom norte para quem navega no mar alto da etimologia. Essa tese eu compro sem susto – pelo menos até alguém descobrir num sebo um volume sebento no qual fique provado que S.E.B.O. não era uma ideia tão maluca, afinal.

Transcrito da coluna Sobre Palavras, de Sérgio Rodrigues
http://veja.abril.com.br/blog/sobre-palavras

By Latuff


quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Tortura foi ‘política de Estado’ na ditadura brasileira, diz Paulo Sérgio Pinheiro

Para Paulo Sergio Pinheiro, a Comissão da Verdade não deve investigar “os dois lados”. Foto: Fabrice Coffrini / AFP

GENEBRA (AFP) – “A tortura foi uma política de Estado durante a ditadura militar no Brasil”, afirmou nesta segunda-feira 17, em Genebra, Paulo Sergio Pinheiro, um dos sete membros da Comissão Nacional da Verdade que deve investigar os crimes cometidos pelo regime militar no período 1964-1985.
“O que queremos provar é que as torturas, os desaparecimentos e os assassinatos não foram um excesso por parte de alguns grupos do Estado: foi uma política de Estado; a tortura foi uma política do Estado brasileiro durante a ditadura militar”, enfatizou Pinheiro, que, além de renomado sociólogo, especialista da ONU em violência contra criança, também é atual presidente da Comissão Investigadora para a Síria do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas. ”Não há a menor dúvida”, respondeu Pinheiro ao ser indagado pela AFP se a ditadura representou um ataque em massa e sistemático contra a população civil no Brasil, que caracteriza os chamados “crimes de lesa humanidade”, imprescritíveis segundo os princípios internacionais de direitos humanos.

“Houve um extermínio de jovens que haviam participado de uma guerrilha na região do Araguaia, onde também houve uma ordem de matar todos os sobreviventes, que foram 40 e que não estavam mais combatendo, estavam simplesmente na floresta”, exemplificou Pinheiro, que já foi Relator Especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU ante a ditadura em Mianmar.

Sobre os supostos crimes da guerrilha no Brasil, Pinheiro disse que, neste caso, “não há dois lados”. “Para a lei, nosso mandato é para investigar os crimes praticados pelos agentes do Estado. Aqueles que participaram da guerrilha urbana, da dissidência armada, foram investigados, processados e condenados”. “Quando a lei de anistia no Brasil foi aprovada em 1979, havia pessoas cumprindo sentença há dez anos. Então, esse alegado, ‘o outro lado’, já foi bastante investigado. O que nunca foi investigado foi a responsabilidade dos agentes do Estado nesses crimes políticos”, enfatizou Pinheiro.
 
Em meados de maio passado, a presidenta Dilma Rousseff, uma ex-guerrilheira que foi torturada e presa pelos militares, instaurou a Comissão da Verdade para investigar as denúncias de violações dos direitos humanos durante a ditadura, mas sem retirar a anistia aos repressores vigente desde 1979. ”A interpretação da Lei de Anistia feita pelo Supremo Tribunal Federal não é um obstáculo nem facilita nossos trabalhos, justamente porque, ao contrário do sistema judiciário brasileiro, nós podemos identificar autores, descrever as circunstâncias dos crimes de morte, de detenção arbitrária, de desaparecimento forçado e de tortura”, concluiu Pinheiro.
Leia mais em AFP Movil

sábado, 15 de setembro de 2012

poesia...

Sou um solitário das madrugadas de pensamentos inconclusos

triste fim de quem ama

com a felicidade da esperança que se renova

de um amor a ser correspondido

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

By Latuff




Incêndios em favelas: dez perguntas

(04/09) - Por Francisco Bicudo, em seu blog:

Mais um incêndio atingiu ontem mais uma favela da cidade de São Paulo - desta feita, as vítimas foram os moradores da Favela do Piolho, no bairro do Campo Belo, na zona sul da capital, numa área que fica próxima, bem pertinho mesmo do aeroporto de Congonhas, imponentemente encravado em região nobre da metrópole. Em 2012, foi o trigésimo segundo incêndio dessa natureza em São Paulo (média de quatro por mês); já tinham sido registrados outros 79, no ano passado. Só ontem, quase 300 casas foram destruídas e mais de mil pessoas ficaram desabrigadas. Não tenho, confesso, condições de fazer afirmações. Mas, como sugeria e ensinava o filósofo grego Sócrates, ao reconhecer que "só sei que nada sei", posso fazer perguntas. Questionar não ofende. E ajuda a pensar. Minhas dúvidas:


1) Será que a Prefeitura de São Paulo nos considera mesmo tolinhos e imagina que vamos acreditar, num exercício de fé profunda, que os incêndios são apenas coincidências, lamentáveis tragédias?

2) Incêndios em favelas nessa quantidade acontecem em alguma outra cidade do planeta? Ou São Paulo é um foco isolado, um ponto fora da curva, uma "metrópole incendiária exclusiva"?

3) Será que apenas os moradores de favelas não sabem acender o gás ou riscar um fósforo, não sabem lidar com o fogo?

4) Por que essa mesma quantidade de incêndios não acontece em condomínios de luxo dos bairros nobres da cidade?

5) Por que a Prefeitura paulistana, à época da administração de José Serra, desativou o Programa de Segurança contra Incêndio, implantado durante a gestão da prefeita Marta Suplicy e que tinha como propósito justamente desenvolver ações de prevenção e orientação especificamente em favelas? E por que o atual prefeito, Gilberto Kassab, não retomou o programa?

6) Por que os bombeiros e as demais autoridades públicas responsáveis pelas investigações não conseguem explicar ou definir as causas e os responsáveis pelos incêndios, com os laudos finais invariavelmente apontando para "motivos indeterminados"?

7) Será que o que de fato move esses incêndios é uma deliberada política de higienização e limpeza social, destinada a expulsar os moradores das favelas, que "enfeiam as paisagens", para aproveitar os terrenos finalmente "limpos" para a especulação imobiliária, tornando assim a fotografia da capital "mais bela e atraente"?

8) Por que nenhum jornal de referência e de grande circulação faz as perguntas que devem ser feitas, com intuito de construir a melhor versão possível da realidade?

9) Por que os repórteres de emissoras de rádio e de TV que transmitem informações ao vivo sobre os incêndios (incluindo os repórteres aéreos) parecem sempre mais preocupados com os reflexos dos incêndios sobre o trânsito, em apontar rotas alternativas para os motoristas, do que em dedicar atenção às vítimas das tragédias (muitas fatais) ou à destruição de casas e de sonhos?

10) Por que nos acostumamos aos incêndios nas favelas e passamos a considerá-los algo "natural, normal", como se já fizessem parte da paisagem urbana e do cotidiano da metrópole, aceitando resignadamente a banalização da tragédia e da violência? Em que lugar do passado ficou perdida nossa capacidade de indignação e de reação?