terça-feira, 30 de junho de 2015

Amazônia: os novos intrumentos do saque


FOTOABCD7Retirado do Jornal A Verdade

No início da invasão europeia, os índios eram tolerados porque os portugueses e espanhóis necessitavam deles para localizar as riquezas de seu interesse, além de serem usados como mão de obra para explorá-las. Mas, na medida em que o invasor foi criando seus próprios instrumentos para localização e exploração dessas riquezas, foi dispensando os donos da casa e ficou agressivo, criando leis e instrumentos de dominação. Entre as leis, a injusta lei da propriedade privada da terra é simplesmente arrasadora para os povos indígenas.

No princípio, a brutalidade dos colonizadores se dava pela violência e eliminação físicas, pela escravização. No período moderno, uma classe desses descendentes europeus procura simplesmente despojar os povos indígenas de seus territórios, tirando-lhes todas as condições de sobrevivência, cultural e física.

Quem são os espoliadores

Em meados do século 20, todos os rios já haviam sido explorados e foi preciso ir território adentro para descobrir e espoliar os últimos depósitos das riquezas amazônicas. Agora os espoliadores já dispõem de todos os instrumentos, leis favoráveis, mapeamento das riquezas e maquinário para explorar o território, dispensando qualquer colaboração autóctone para transpor os obstáculos que se apresentam.

Assim, todos os governos, ditatoriais e democráticos, começam a romper as florestas e o alto dos rios e igarapés como se fossem “vazios demográficos”. A entrega dos empreendimentos novos na Amazônia a empresas – ficções criadas pelo homem e, por isso, sem consciência e sem responsabilidade – alivia, aparentemente, a ciência congênita ou a consciência dos mandantes dos crimes atuais. E o almoxarifado da Amazônia começa a ser conhecido e saqueado em todas as suas dimensões: terra, rios, peixes, seixos, minerais, madeira, plantas medicinais, fontes energéticas… A gente que está aí “não existe mais” e, se existe, não deveria existir, porque é apenas “estorvo do desenvolvimento”!

A Zona Franca de Manaus, “vaca sagrada” dos governantes de hoje, foi um dos instrumentos modernos mais eficazes criados para desapropriar o povo Amazônico. Em 1976, acompanhei o drama das populações indígena e seringueira do Acre quando a ditadura militar entregou os seringais a empresários sulistas, dispensando a mão de obra das famílias e comunidades ali existentes e pressionando-as a saírem sem rumo.

Em longa caminhada entre o alto Rio Purus e o Envira e na margem deles encontrei famílias perplexas e sem destino. Tentei convencê-las sobre os seus direitos. No dia seguinte, o barquinho do “marreteiro” em que viajava foi cercado por jagunços dos novos donos do Seringal Califórnia, já transformado em fazenda. Armados, ameaçavam com xingamentos e apelavam para as novas leis criadas junto com Superintendência para o Desenvolvimento da Amazônia (Sudam).

Dias depois, quando, numa favela de Feijó formada por famílias seringueiras já expulsas, contava das frutas que havia comido na minha passagem por seringais abandonados por elas, todos caíram em pranto. Um ano depois, subindo outro rio, o Juruá, me defrontei com dezenas de canoas com tolda improvisada, descendo o rio rumo a Manaus. O refúgio final de toda essa gente foi a Zona Franca.  Ali, já despejados de seus direitos, ficaram meros “invasores”. Noventa por cento dos bairros de Manaus foram criados por famílias despejadas do território da Amazônia. Vi as barracas desses “invasores” formando bairros como Compensa, Alvorada, Flores… até os mais recentes.

Muitos manauaras descendentes dessas vítimas, que vivem hoje sobre o asfalto e o cimento e da “nova” educação imposta pelas autoridades, ainda não se deram conta de para que serviu a Zona Franca, projeto espoliador dos direitos de seus pais e cremadora do seu futuro, achando que a sua expulsão do interior foi um benefício que as ditaduras lhes prestaram. Simultaneamente com a Zona Franca, instalou-se por todo o território amazônico o agronegócio devastador da biodiversidade pela monocultura eurocêntrica e contaminadora do território mediante o uso de agrotóxicos.

As hidrelétricas começaram a barrar os rios. A população remanescente, já exígua, tornou-se impotente para resistir a esses “monumentos da insanidade humana”: Balbina, Belo Monte, Jirau, Santo Antônio… e hoje já são poucas as comunidades que dão respaldo aos Munduruku em sua resistência contra os projetos hidrelétricos ameaçadores do mais belo sistema fluvial do mundo: o Tapajós.

A aceleração do saque

Mineradoras e garimpos ferem por toda parte o ecossistema e agridem as leis do País, invadindo territórios indígenas, saqueando sem controle as riquezas minerais e ameaçando a gente que resiste em seus domínios. Nos apontem pelo menos um posto ou centro sério de controle mineral em toda a região amazônica! A propósito do tema, deve-se ler Mineração e Violações de Direitos: O Projeto Ferro Carajás S11D, da Vale S.A. – Relatório da Missão de Investigação e Incidência, de Cristiane Faustino e Fabrina Furtado.

Hoje, a grande preocupação dos mandantes da Amazônia é a construção de mais e mais portos para acelerar o saque. Estive há poucas semanas em Santarém, um dos alvos principais, e constatei, in loco, a virulência dos saqueadores para acelerar a construção de portos para a exportação de commodities: madeira, soja, minérios. E eles vêm do mundo inteiro. A Cargill já controla o principal porto da cidade. Mas o mais ousado projeto é o dos chineses, que pretendem construir em Santarém, além de um porto, uma estrada de ferro Santarém-São Paulo. Desde o Império praticamente não se construiu mais nenhuma estrada de ferro de interesse do povo brasileiro, para sua locomoção e para transporte de seus produtos. Mas quando se trata de saquear a Amazônia há dinheiro para tudo. Está aí a estrada de ferro Carajás-São Luís, de propriedade da Vale do Rio Doce, ex-estatal, praticamente doada pelo Governo FHC a donos privados.

Para incentivar este modelo de exportação de commodities, modernizam-se portos, constroem-se hidrelétricas e linhões que conduzem a energia rumo aos centros onde se articula a entrega da região ao poder multinacional. E toda essa modernização, apoiada pelas autoridades locais e distantes, só tem uma finalidade: agilizar o saque do almoxarifado Amazônia. Os interesses das grandes empresas vão prevalecendo com muito custo econômico para o País e sem os consequentes benefícios sociais. Todos estes empreendimentos são construídos sem consulta séria à população afetada – no caso, comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas – e sem atender à proteção ambiental. Aos pobres atingidos por estes projetos, como ao povo do Antigo Testamento, em sua impotência, resta apenas pedir a maldição de Deus para as pessoas que comandam empresas iníquas e constroem obras da maldade.

Segundo a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq), responsável pela autorização da atividade portuária, “70% da movimentação de embarcações na Amazônia hoje é para o transporte de minério de ferro, seguido dos produtos metalúrgicos e da soja”.

Em todo esse processo, de 1540 até hoje, uma coisa permanece constante: o perfil espoliador de todos os mandantes, dos colonos portugueses aos dirigentes atuais. Nada construíram realmente visando ao povo local e regional. Suas cabeças continuam poluídas com o mesmo sentimento da Família Real Portuguesa: saquear, saquear, exportar e exportar.

Veja a mais recente descoberta. O governador do Amazonas, José Melo, descobriu que a água da Amazônia também pode servir como mercadoria de exportação. Enquanto isto, o seixo dos rios, necessário para a sobrevivência da vida subaquática, foi espoliado para a construção dos arranha-céus da Zona Franca de Manaus. E a alimentação, fácil e sadia, das comunidades amazônicas vai desaparecendo. Nos últimos 40 anos, o peixe diminuiu em tamanho e quantidade. Da mesma forma, as florestas. As deliciosas frutas restantes na floresta devastada, que antes alegravam grandes e pequenos e eram acessíveis sem dinheiro, agora viraram mercadoria, sumindo paulatinamente da mesa do povo empobrecido da Amazônia.

Egydio Schwade, Casa da Cultura do Urubuí

segunda-feira, 29 de junho de 2015

A próxima fronteira da onda conservadora: a Universidade

Retirado do site Jornal GGN

Os eventos em curso na sociedade brasileira e as iniciativas legislativas em discussão delineiam que a universidade não será, também, poupada do atual retrocesso democrático. Assim, cabe reconhecer que “cada nação e cada povo possuem a universidade que merecem. Acabaremos muito mal, neste terreno, se não soubermos o que queremos e, principalmente, se não soubermos lutar pelo que queremos”.

O pensamento de Florestan Fernandes expresso quase dez anos antes da promulgação da Constituição Federal de 1988 nos faz refletir acerca de um dos grandes temas relegados ao segundo plano pela doutrina constitucional americana e que no Brasil, apesar da nossa própria “Carta Cidadã”, em seus artigos 206 e 218, consagrar que o ensino será ministrado com base na “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” e no “pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas”, bem como que o Estado, em caráter prioritário, promoverá e incentivará a pesquisa científica, “tendo em vista o bem público e o progresso da ciência, tecnologia e inovação”, até hoje não recebeu a devida análise: a liberdade acadêmica.

Lá, como aqui, a compreensão da liberdade de expressão como gênero ou direito-mãe, de forma a abranger todas as liberdades comunicativas que lhe são correlatas, como liberdade de imprensa, liberdade de manifestação do pensamento, liberdade de culto, etc., não ensejou o merecido estudo da liberdade acadêmica em si mesma.

Nos EUA, o conceito de liberdade acadêmica foi definido pela Associação Americana de Professores Universitários (AAUP) em 1915 na publicação da “Declaração de Princípios sobre a Liberdade Acadêmica e Liberdade de Cátedra do Professor”, a qual afirmava que esta assegura à universidade e aos professores universitários “a plena liberdade na pesquisa e na publicação dos seus resultados”, em prol do “bem comum”.

Essa questão fundamental anima o estudo realizado pelo Reitor da Escola de Direito da Universidade de Yale, especialista na Doutrina da Primeira Emenda e em liberdade acadêmica, Robert C. Post, em sua obra Democracy, expertise, and academic freedom: a first amendment jurisprudence for the modern state (2012).

Em detida análise da jurisprudência da Suprema Corte americana, Robert Post identifica que o primeiro caso a tratar dessa questão foi Sweezy v. New Hampshire (1957). O respectivo caso relata a história do Professor Paul Sweezy, um economista marxista, que ao fazer uma série de palestras na Universidade de New Hampshire, foi denunciado por um colega, sob a alegação de que suas aulas continham conteúdo socialista e que também participara de festa com teor político.

A Suprema Corte entendeu que as aulas ministradas pelo professor não poderiam sofrer qualquer tipo de regulação, pois tal atitude acabaria pondo em risco o futuro da nação, já que as universidades e seus estudiosos produzem conhecimento, e este é necessário para a sociedade.

Esta discussão repercute no intuito primeiro do presente artigo: refletir sobre a proposta de cerceamento da atuação acadêmica nas universidades brasileiras por parte do Poder Legislativo. Encontra-se em tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 1.411/2015, apresentado pelo Deputado Federal Rogério Marinho (PSDB-RN), coordenador da bancada tucana na Comissão de Educação da Câmara, com o propósito de criar um novo tipo penal: o crime de "assédio ideológico". 

No artigo 2° do respectivo Projeto de Lei é definido o pretenso crime: "Entende-se como Assédio Ideológico toda prática que condicione o aluno a adotar determinado posicionamento político, partidário, ideológico ou qualquer tipo de constrangimento causado por outrem ao aluno por adotar posicionamento diverso do seu, independente de quem seja o agente". A previsão de detenção da proposta é de 3 meses a 1 ano e multa, direcionada a professores, psicólogos e coordenadores de instituições de ensino. 

Referida proposição legislativa nos traz à memória o Decreto-Lei 477/69, conhecido como o “AI-5 das universidades”, instituído no auge da Ditadura Militar, o qual permitiu que agentes repressores pagos pelo Estado desempenhassem “patrulhamento ideológico”, cerceando a liberdade de cátedra e monitorando a conduta acadêmica de professores e alunos, decorrendo daí a expulsão sumária de pessoas apontadas como participantes de “movimentos subversivos”, dentre elas, o Professor Titular de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense – UFF, Daniel Aarão Reis Filho, da UFF, expulso da Faculdade de Direito da UFRJ e preso, bem como o então professor de sociologia da USP, Fernando Henrique Cardoso, afastado das suas funções em 1969.

Mas, então, a quem caberia definir o conceito de liberdade acadêmica? Quais seriam os seus limites?

Diante destas questões, Robert Post defende que a verificação deste tipo de competência deve ser estipulada por standards, criados pelas próprias universidades e seu corpo docente a fim de construir parâmetros delimitadores das fronteiras da liberdade acadêmica. Estes, por sua vez, possibilitariam certa proteção à comunidade acadêmica frente à pressão política da opinião pública.

Acrescenta o autor que a liberdade acadêmica de pesquisa e publicação, como um valor constitucional, possibilita e legitima a apresentação e discussão, por parte dos professores, de suas pesquisas e conclusões. Reforça ainda que a regulação do discurso de professores e alunos dentro da universidade pode até ser realizada para fins pedagógicos, porém apenas através de normas técnicas, criadas por um corpo acadêmico qualificado e sem influência de regras externas, sob risco de impedir a expansão do conhecimento.

A relevância desta discussão para os dias atuais no Brasil resulta de uma já demandada reflexão sobre o papel das universidades no contínuo desafio de influenciar o discurso público e de ser vanguarda do conhecimento para qualquer país que queira reproduzir tradições laicas e liberais. Reflete ainda uma necessária demarcação de posição frente à ascensão de uma onda conservadora na sociedade brasileira que já desenha uma tendência preocupante de avanço e entranhamento institucional, a fim de evitar que a liberdade acadêmica seja a próxima fronteira para determinados setores da sociedade e do Congresso Nacional que instrumentalizam o fundamentalismo e obscurantismo em suas práticas.

*Rafael Bezerra é Mestre em Teorias Jurídicas Contemporâneas (UFRJ), Advogado e Pesquisador do Observatório da Justiça Brasileira (OJB/UFRJ)

José Ribas Vieira é Doutor em Direito (UFRJ), Professor Associado da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio), Professor Associado IV da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Coordenador do Observatório da Justiça Brasileira (OJB/UFRJ)