Paulo Nogueira
A passagem mais interessante que conheço de política une as figuras
opostas de Leonel Brizola e Roberto Marinho na cinematográfica sala de
RM na sede da Globo.
Roberto Marinho era Roberto Marinho e Brizola era o governador do
Rio, eleito mesmo com a trapaça – o caso Proconsult — que a Globo montou
para desrespeitar a escolha do povo pelas urnas.
Batiam-se por mundos diferentes, e se detestavam abertamente. Roberto
Marinho convidou um dia Brizola para um almoço, na tentativa de selar
uma trégua.
Deu a Brizola – gaúcho — a vista mais linda do Rio e do Brasil, aquela que se tinha de sua sala, e se sentou do outro lado.
Depois de um breve tempo, Roberto Marinho disse: “Está provado que o
senhor não gosta mesmo do Rio, governador. Eu lhe dei esta vista e o
senhor não se dignou a olhá-la.”
Brizola imediatamente retrucou: “O senhor estraga qualquer vista, Doutor Roberto Marinho.”
Este era Brizola.
Fiquei tocado ao saber que seu nome foi gritado na avenida no
Carnaval do Rio por pessoas inconformadas com a bajulação abjeta que a
Beija Flor fez em seu desfile a Boni e, por extensão, à Globo.
Brizola venceu, mais uma vez.
A Beija Flor depois de muitos anos ficou fora do desfile das campeãs.
Brizola foi, ao lado de Getúlio Vargas, o maior político da história do Brasil.
Sabia que, para reformar o país, era preciso desmontar o símbolo supremo da iniquidade nacional – a Globo.
“O que é bom para a Globo é ruim para o Brasil”, disse.
Corajoso, Brizola tentou convencer seu cunhado Jango a resistir
militarmente ao golpe, a partir do Rio Grande do Sul, estado do qual ele
fora governador.
Jango era menos combativo, e entendeu que a causa estava perdida:
muitos brasileiros morreriam numa guerra civil, e a presença americana
do lado dos golpistas impediria qualquer chance de evitar a queda da
democracia.
Mas Brizola não se rendeu. Recebeu, durante algum tempo, recursos de Cuba para montar uma operação de resistência.
Documentos mostram que ele anotava, num papel, como era empregado
cada centavo. Não, a direita não teria ali a chance de dizer que ele se
apropriava dos fundos cubanos para tachá-lo de corrupto.
Era um brasileiro íntegro, um político visionário, um apóstolo da
justiça social, e é uma imensa pena que não tenha, com a
redemocratização, chegado à presidência.
Buscaram prejudicá-lo o tempo todo. A sigla que ele simbolizava como
ninguém, o PTB, foi entregue a uma descendente inexpressiva de Vargas, e
ele teve que inventar o PDT para continuar na vida política.
Votei nele em 1989, e foi para mim o fim da era da inocência
política. Fiquei arrasado quando, por escassa margem de votos, ele não
passou para o segundo
turno.
Nunca mais senti o mesmo quando algum candidato em que votei foi batido.
Brizola disputou a segunda colocação, voto a voto, com Lula.
A vitória apertada de Lula como que selou o nome de quem representaria, dali por diante, a esquerda nacional.
Num exercício tolo, às vezes me pergunto o que teria ocorrido se Brizola tivesse ido para o segundo turno, em vez de Lula.
A Globo teria coragem de favorecer Collor e meter medo no oponente,
no debate decisivo, com uma mala em que supostamente estavam denúncias?
A mala – com denúncias imaginárias – foi vital para que Lula tivesse
um desempenho sofrível no debate. Cada vez que Collor se aproximava
dela, Lula tremia.
Brizola, presumivelmente, teria denunciado a mala a todos os
brasileiros em pleno debate, caso o mesmo golpe baixo fosse tentado
contra ele.
A mim parece claro que, para o Brasil, a vitória de Brizola teria sido melhor que a de Lula em 1989.
Brizola teria enfrentado a Globo, para começo de conversa. Não por
não gostar das novelas, ou da voz de Cid Moreira, ou das piadas de
Faustão, mas por compreender que a Globo é a Bastilha brasileira, o
símbolo da desigualdade e dos privilégios.
Enquanto a Globo não for desmontada pouca coisa se fará no avanço
social brasileiro, porque a Globo é a guardiã dos privilégios com o
esquema de controle que montou para monitorar a Justiça e o mundo
político.
Lula fugiu da luta, e isso ficou claro quando compareceu ao enterro
de Roberto Marinho – o homem da mala do debate com Collor – e fez ali
uma eulogia vergonhosa. Completou o serviço decretanto luto oficial de
três dias.
É uma pena que Lula seja pouco cobrado por um gesto pusilânime e oportunista que atrasou tanto o combate à desigualdade social.
Fosse cobrado, teria talvez caído em si, e a sociedade quem sabe
ganhasse o prêmio de uma regulamentação de mídia que impeça uma só
empresa de ter tanto poder em tantos meios.(Até o México enquadrou a
Televisa, a Globo local.)
Voltei no tempo ao ler que gritaram o nome de Brizola na avenida, em repúdio ao endeusamento da Globo.
Por minutos, era um jovem jornalista de 33 anos, como em 89, e talvez
meus olhos míopes tenham ficado marejados com a menção de Brizola,
tanto tempo depois.
Detesto Carnaval, mas como eu queria estar naquele momento na avenida
para gritar, com o povo, o nome dele, por tudo que podia ter sido e que
não foi quando ele perdeu – Brizola, Brizola, Brizola.
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