“As pessoas não vão aceitar.
Se elas tiverem acesso a essas informações, não podem aceitar isso”. A frase é
da economista Denise Gentil, professora da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). A indignação que ela aposta que mobilizará a maioria da população
brasileira é com a proposta de uma nova reforma da previdência, que o governo
interino promete apresentar e aprovar no Congresso Nacional ainda este ano. As
informações que alimentariam essa recusa são simplesmente a negação de tudo que
você lê e ouve diariamente nos jornais: na pesquisa feita para sua tese de
doutorado, Denise mostra, com dados oficiais, que o Brasil não tem nenhum rombo
na previdência social. Mais do que isso: anualmente, sobra (muito) dinheiro no
sistema público que hoje garante aposentadorias e pensões a 32 milhões de
trabalhadores. Até agora, o ‘otimismo’ da pesquisadora em relação a uma ‘grita’
da população tem razão de ser: segundo a pesquisa ‘Pulso Brasil’, realizada
pelo Instituto Ipso em junho deste ano, nos 70% de desaprovação do governo
Temer, a forma como o interino vem atuando em relação à reforma da previdência
é o que tem a maior taxa de rejeição — 44%.
O fato é que, como resposta
à crise econômica, uma nova reforma da previdência vem sendo desenhada desde o
ano passado. Ainda no governo da presidente Dilma Rousseff, foi criado o Fórum
de Debates sobre Políticas de Emprego, Trabalho e Renda e de Previdência
Social, que produziu um relatório de diagnóstico mas não chegou a apresentar ou
apreciar propostas. Após o afastamento temporário da presidente, o governo
interino teve pressa: montou um novo Grupo de Trabalho, com a participação de
quatro centrais sindicais — Força Sindical, União Geral dos Trabalhadores
(UGT), Central dos Sindicatos Brasileiros (CSB) e Nova Central Sindical de
Trabalhadores (NCST) —, além da Associação Nacional de Auditores Fiscais da
Receita Federal do Brasil (Anfip) e do Departamento Intersindical de
Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) para encaminhar o tema. Na
primeira reunião, o governo interino apresentou o seu diagnóstico. Na segunda,
as centrais entregaram propostas para aumentar as receitas da previdência. No
dia 28 de junho, aconteceu o terceiro e último encontro. Nele, os ministros
interinos encaminharam a substituição desse grupo por outro mais reduzido,
agora com a presença de um representante da Confederação Nacional da Indústria
(CNI), que até então não vinha participando das negociações, um integrante do
governo interino e um porta-voz dos trabalhadores (Dieese). Antecipando medidas
de 'economia' que atingem diretamente a previdência, o governo interino emitiu,
no dia 7 de julho, um Medida Provisória (nº 739/2016) que dificulta ainda mais
o acesso ao auxílio-doença e à aposentadoria por invalidez. Entre as mudanças
implementadas, está a interrupção automática do benefício no prazo de 120 dias,
obrigando o segurado a requerer a prorrogação junto ao INSS, e a criação do
Bônus Especial de Desempenho Institucional por Perícia Médica em Benefícios por
Incapacidade, que significará um "incentivo" no valor de R$ 60 pago
pelo governo aos médicos por cada perícia realizada além da "capacidade
operacional ordinária". Antecipando o resultado das perícias que ainda
serão feitas, o governo já calcula que essas medidas gerarão uma economia de R$
6,3 bilhões anuais, às custas da diminuição de benefícios dos trabalhadores.
A proposta oficial de
reforma da previdência, no entanto, não tinha sido apresentada até o fechamento
desta matéria. Mas isso é apenas um detalhe. Desde o seu programa antecipado de
governo até as muitas declarações de Henrique Meirelles, ministro interino da
fazenda, e do próprio Temer, não é segredo para ninguém que, entre outras
coisas, o governo provisório quer instituir (e aumentar) a idade mínima para a
aposentadoria e restringir as regras da previdência rural. O argumento é que,
em nome do ajuste fiscal, são necessárias medidas estruturais que reduzam os gastos
do Estado. E a previdência aparece destacada como o maior deles, responsável
por um rombo que, segundo previsões do governo interino, deve chegar a R$ 136
bilhões este ano. Esses números, no entanto, são desmentidos por pesquisadores
e entidades que se dedicam ao tema.
Contas
que não batem
Por mais que a matemática
seja considerada uma ciência exata, quando o assunto é a situação da
previdência no Brasil, há muito tempo que dois mais dois não têm dado quatro.
Lidando com os mesmos dados primários, governos (o interino e o da presidente
Dilma) e estudiosos chegam a resultados diametralmente opostos. Para se ter uma
ideia, enquanto os economistas do governo provisório apontam em 2015 um déficit
de R$ 85 bilhões, no mesmo ano as planilhas da Anfip anunciam um superávit de
R$ 24 bilhões. E a comparação com os anos anteriores mostra que, em função do
aumento do desemprego, que diminui a arrecadação, esse saldo positivo foi bem
menor do que os R$ 53,9 bilhões que sobraram em 2014 e os R$ 76,2 bilhões de 2013,
anos em que, do lado do Planalto, já se falava em déficit. “O governo faz um
cálculo muito simplório. De um lado, ele pega uma das receitas, que é a
contribuição ao INSS, dos trabalhadores, empregadores, autônomos, trabalhadores
domésticos, que é o que a gente chama de contribuição previdenciária. Do outro,
pega o total do gasto com os benefícios: pensão, aposentadoria, todos os
auxílios — inclusive auxílio doença, auxílio-maternidade, auxílio-acidente — e
diminui. Então, isso dá um déficit”, explica Denise Gentil.
A primeira vista, pode
parecer um erro matemático. Isso porque a Constituição Federal estabelece, no
artigo 194, que, junto com a saúde e a assistência social, a previdência é
parte de um sistema de seguridade social que conta com um orçamento próprio.
Esse orçamento, por sua vez, é alimentado por tributos criados especificamente
para esse fim. Assim, diferente do que os governos fazem, na parcela de cima da
conta da previdência — a receita — devem ser incluídas não apenas as
contribuições previdenciárias mas também recursos provenientes da Contribuição
Social Sobre Lucro Líquido (CSLL), Contribuição sobre o Financiamento da
Seguridade Social (CSLL) e do PIS-Pasep. Para se ter uma ideia da diferença que
esse ‘detalhe’ faz, contadas apenas as contribuições previdenciárias, a receita
bruta da previdência em 2014 foi de R$ 349 bilhões para pagar um total de R$
394 bilhões de benefícios. Essa conta, que Denise caracteriza como “simplista”,
mostra um déficit de R$ 45 bilhões — ainda assim muito menor do que o anunciado
pelo governo. Quando, no entanto, se considera a receita total, incluindo os
mais de R$ 310 bilhões arrecadados da CSLL, Cofins e PIS-Pasep, esse orçamento
pula para R$ 686 bilhões.
Talvez você esteja supondo
que o dinheiro que sobrou no orçamento da seguridade social mas faltou no da
previdência tenha sido usado nas outras duas áreas a que, constitucionalmente,
ele se destina: saúde e assistência. Mas essa é uma meia verdade. A soma dos
gastos federais com saúde, assistência e previdência totalizou, em 2014, R$ 632
bilhões. Como o orçamento da seguridade foi de R$ 686 bi, no final de todas as
receitas e todas as despesas, ainda sobram R$ 54 bilhões. E como esse saldo se
transforma em déficit? Com uma operação simples: antes de destinar o dinheiro
para essas áreas, o governo desvia desse orçamento 20% do total arrecadado com
as contribuições sociais, o que, em 2014, significou um ralo de R$ 60 bilhões.
Na prática, isso significa
que o orçamento que a Constituição vinculou, governos e parlamentos vêm
desvinculando todos os anos, desde 1994. Trata-se da Desvinculação de Receitas
da União (DRU), um mecanismo aprovado e renovado no Congresso a cada quatro
anos que autoriza os governos a usarem livremente parte da arrecadação de
impostos e contribuições, sempre sob o argumento de que é preciso desengessar o
orçamento para melhor administrar o pagamento da dívida pública. Ela acaba de
ser mais uma vez prorrogada no Congresso, agora por um período mais longo (oito
anos e não quatro) e com uma alíquota maior, de 30%. Segundo cálculos da Anfip,
em 12 meses isso significará o desvio de cerca de R$ 120 bilhões arrecadados
por meio de contribuições sociais, que deveriam alimentar o caixa da seguridade
social. “Se a previdência é deficitária, o governo vai retirar 30% da onde?
Como um sistema que está à beira de quebrar pode ceder 30% para outros fins que
nem se precisa justificar?”, provoca Sara Graneman, professora da Escola de
Serviço Social da UFRJ e pesquisadora do tema.
Por mais contraditório que
seja, a DRU fornece o amparo legal para o cálculo dos governos, que contraria a
garantia prevista na Constituição. Mas aqui é necessário cautela. Primeiro
porque nem com a DRU o “rombo” chega perto do que os governos e jornais
alardeiam. Segundo porque, mesmo com a DRU, o orçamento continuaria positivo se
os governos não retirassem outra bolada do caixa da previdência e da seguridade
por meio de isenções fiscais, ou seja, tributos que deixam de ser cobrados das
empresas, como forma de ‘incentivo’. Agora mesmo em 2016, ano em que a reforma
da previdência vem sendo debatida como prioridade tanto pelo governo eleito
afastado quanto pelo governo interino, a Lei Orçamentária Anual, enviada pelo
Executivo e aprovada pelo Congresso, prevê R$ 69 bilhões de renúncia apenas dos
recursos da previdência, sem contar o conjunto das contribuições que financiam
toda a seguridade social. A simples decisão de não abrir mão desses recursos
faria com que a previdência fechasse as contas no azul. “Você diz que a
previdência tem um déficit de R$ 85 bilhões mas renuncia ao equivalente a 3% do
PIB de receita? E depois quer que a sociedade aceite uma reforma da
previdência?”, questiona Denise Gentil.
Isso sem contar a sonegação fiscal que, segundo cálculos do Sindicato
Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional, impediu que R$ 453 bilhões
chegassem aos cofres públicos no ano passado. Em outras palavras: o déficit é
produzido, não por fórmulas matemáticas, mas por opções políticas. “Ninguém
discute neste país os mais de R$ 501 bilhões que foram bastos no ano passado
com os juros da dívida. Ninguém discute os mais de R$ 200 bilhões que foram
gastos só para segurar a taxa de câmbio. Mas discute-se o fato de que 70% dos
benefícios da previdência são de até dois salários mínimos. É uma loucura!”,
diz Denise. Sara completa: “Não é a estrutura de financiamento nem a pirâmide
etária que têm problemas. O problema é a retirada de recursos. Essa é a maior
pedalada que o Brasil tem”.
Concepções
que não batem
Denise é enfática em afirmar
que “não faz sentido falar em déficit da previdência”. E, ao dizer isso, ela
não está apenas repetindo que as contas do governo estão erradas. “Trata-se de
um princípio filosófico”, explica, defendendo a concepção que orientou o
capítulo de seguridade social da Constituição. “A ideia é nós termos um sistema
de proteção social que abrange as pessoas na velhice, na adolescência, na
infância...”, exemplifica, para justificar por que essas áreas, que atendem a
necessidades sociais, têm que ser geridas pela demanda e não pela oferta de
recursos disponíveis.
O grande salto da
Constituição foi compreender que, como sistema voltado a garantir direitos, a
seguridade deveria ser “financiada por toda a sociedade, de forma direta e
indireta”. O envelhecimento da população e a mudança na pirâmide etária
brasileira, por exemplo, que têm sido usados como um dos principais argumentos
em defesa de uma nova reforma, já estavam previstos no princípio que regeu esse
capítulo da Constituição. Essa é uma das razões para que se tenha um orçamento
composto não só por contribuições dos próprios trabalhadores e seus
empregadores, mas também por tributos pagos pelas empresas em geral. A idéia
era exatamente garantir sustentabilidade mesmo quando a população de idosos,
que usufrui da aposentadoria, superasse a população economicamente ativa, que
contribui para ela. “A Constituição de 1988 foi um raio em céu azul. Porque a
partir dali o que houve foi uma dilapidação dos princípios constitucionais, foi
a ilegalidade sendo patrocinada pelo Estado para restringir direitos sociais”,
lamenta Denise, que completa: “É uma disputa antiga e será eterna porque é uma
disputa de classe”.
Problemas
do envelhecimento?
De fato, embora não tenha
apresentado uma proposta oficial, a medida mais alardeada na reforma da
previdência prometida pelo governo interino é o estabelecimento de uma idade
mínima para aposentadoria. O argumento: a população brasileira está
envelhecendo e, em 2040, essa mudança da pirâmide vai tornar o sistema
insustentável. “Acho um certo excesso de zelo. Os governos não conseguem prever
a próxima crise e querem nos convencer do que vai acontecer em 2040?”, ironiza
Sara Granemann.
O argumento da pressão
demográfica também não é novo. O relatório elaborado pelo grupo técnico
instituído pelo governo Dilma, que discutiu o tema até pouco antes do
afastamento da presidente, informa que, em 2015, a expectativa de vida do
brasileiro era de 75,4 anos e que, em 2042, esse tempo médio de vida subirá
para 80,07 anos. “O aumento da longevidade da população demanda ações
específicas para a sustentabilidade da seguridade social”, conclui o relatório.
Sara ressalta que essa mudança etária deveria ser comemorada e não servir de
pretexto para se retirar direitos da população. “O aumento da expectativa de
vida é um feito da humanidade no século 20. Se elevar para todo mundo a
aposentadoria para 65 anos, por exemplo, você terá pessoas se aposentando a
menos de dez anos da morte”, alerta. Declarações mais recentes do Palácio do
Planalto, no entanto, dão conta de um cenário ainda pior: matéria publicada no
jornal O Globo no último dia 27 de junho afirma que o “governo Temer quer
permitir aposentadoria só a partir dos 70 anos”. A notícia é que o projeto que
está sendo elaborado proporia idade mínima de 65 anos para agora, ampliando
para 70 daqui a 20 anos. “O cálculo é o quanto mais perto da morte o direito da
aposentadoria deve chegar”, denuncia Sara.
Vilson Romero, presidente da
Anfip, explica que a primeira desmistificação que precisa ser feita é
exatamente em relação a essa expectativa de vida. E aqui o pulo do gato do
discurso governamental está em divulgar apenas o cálculo da “média”. “Como
estabelecer uma idade mínima para aposentadoria num país como o Brasil, onde no
campo se morre aos 55 anos e no Rio Grande do Sul há quem viva até os 85, 90
anos?”, questiona, destacando a maioria dos brasileiros que vivem sob condições
precárias de trabalho morre antes de fazer jus à aposentadoria.
Mas os especialistas ouvidos
pela Poli alertam ainda para uma segunda desmistificação necessária nessa
discussão. “Já existe idade mínima”, diz Sara. Além dos auxílios (doença,
maternidade, entre outros), pensão por morte e benefícios acidentários e assistenciais,
o Regime Geral da Previdência Social engloba três modalidades de aposentadoria:
por invalidez, idade e tempo de contribuição. Por definição, não cabe restrição
de idade para as aposentadorias concedidas a pessoas que, vitimadas por doenças
ou acidente, tenham ficado impedidas de trabalhar. A aposentadoria por idade já
estabelece o mínimo de 60 anos para mulheres e 65 para homens – nesse caso, o
objetivo de uma nova reforma seria jogar a aposentadoria mais para frente. A
modalidade por tempo de contribuição permite que o trabalhador se aposente em
qualquer idade, desde que contribua durante 30 anos, se for mulher, ou 35 anos
no caso dos homens. É nessa modalidade que poderia estar concentrado o
contingente de trabalhadores que conseguem o benefício aos 55 anos – média que
tem sido alardeada pelos governos como a idade em que os brasileiros se
aposentam. A partir de uma medida aprovada no ano passado, o trabalhador tem a
alternativa de se aposentar quando a soma do seu tempo de contribuição (30 ou
35) com a idade resultar em 85 ou 90 para mulheres e homens, respectivamente. A
cada dois anos, acrescenta-se um ponto nesse resultado final, de modo que, em
2026, a soma tenha que dar 90 e 100.
Além disso, mais uma vez, os
números desmentem o argumento: dos 32 milhões de benefícios garantidos pela
previdência brasileira, apenas 5,4 milhões ou 16,6% estão nessa modalidade. O
número é baixo por uma razão muito simples: com o alto grau de informalidade e
instabilidade do mercado de trabalho brasileiro, são poucas as pessoas que
conseguem ter vínculo empregatício que gere contribuição por 30 ou 35 anos
seguidos. Isso significa que a maioria da população brasileira se aposenta com
uma idade muito maior do que aquela que é divulgada pelos defensores da reforma
previdenciária. Trata-se, mais uma vez, de uma ‘matemática’ particular: segundo
Romero, mesmo não fazendo o menor sentido estabelecer idade para aposentadoria
por invalidez ou pensão por morte, por exemplo, esses benefícios são
contabilizados pelo governo no cálculo que produz a média de 55 anos.
Velhice
e desenvolvimento
Mas de pouco vale a
desmistificação desses números diante da afirmação repetida de que, com a
mudança da pirâmide etária, o sistema da previdência vai entrar em colapso em
algumas décadas. “Não vai acontecer nada disso”, garante Denise Gentil,
completando: “O discurso demográfico do envelhecimento populacional é um
discurso do mercado financeiro”. Como economista, seu argumento é que não se
pode fazer previsões para o futuro sem levar em conta uma variável que as
análises “catastrofistas” dos governos sempre ignoram: a produtividade. “Quando
você vê as planilhas do ministério da previdência, todas as variáveis estão
projetadas para o futuro: massa salarial, massa de benefícios, inflação, taxa de
crescimento do PIB... Só não tem a produtividade”, descreve. E explica: “Se
tivesse esse cálculo, ficaria claro que, no futuro, embora existindo em menor
número, cada trabalhador vai produzir muito mais do que se produz hoje. E que,
portanto, essa capacidade produtiva maior vai gerar produto e renda no montante
suficiente para pagar os salários dos ativos e os benefícios dos inativos”.
Diante de “uma produção
gigantesca”, diz, a preocupação deve ser garantir um mercado consumidor à
altura. E é aqui que entram os aposentados. “O envelhecimento da população
brasileira não vai ser problema, mas solução”. Desde que eles tenham a
aposentadoria garantida, claro.
Aposentadoria
no campo e salário mínimo
Outro ponto que tem sido
apontado pelos ‘especialistas’ governamentais é a necessidade de se mudarem as
regras da aposentadoria dos trabalhadores rurais. Hoje, a Constituição permite
aos trabalhadores do campo se aposentarem cinco anos antes dos urbanos, sem
exigência do tempo mínimo de contribuição, recebendo um salário mínimo. Segundo
Denise Gentil, as discussões da reforma vinham cogitando não só igualar a idade
de aposentadoria como condicioná-la à contribuição, ou seja, equiparar com os
critérios da previdência urbana. “Como se você tivesse condições de comparar
essas duas realidades, do trabalhador rural e urbano, neste país”, contesta.
De fato, considerado apenas
o fluxo de caixa entre a receita e a despesa previdenciária, sem levar em conta
os recursos da seguridade social como um todo, o subsistema de previdência
rural apresenta um déficit que, em 2015, foi de R$ 90,0 bilhões. Romero explica
que, de um lado, esse desequilíbrio expressa o impacto de uma medida muito
positiva para os trabalhadores: a valorização do salário mínimo na última
década que, “obviamente deu uma valorizada muito grande no benefício rural”.
Mas o problema, na sua avaliação, está na falta de contribuição de um setor
central da economia no campo: o agronegócio. Hoje, as empresas desse ramo são
isentas de contribuição previdenciária sobre o que é exportado e pagam uma
alíquota de 2,6% sobre a receita bruta da comercialização interna. Como regra
geral, os outros setores pagam 20% sobre a folha de pagamento. “Isso tem sido
contestado pela CNA [Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do
Brasil], pelo ministério da agricultura, mas eu acho que é chegada a hora de o
agronegócio, que tem sido tão incentivado, ser incentivado também a contribuir
um pouco mais para o equilíbrio das contas da previdência rural”, analisa
Romero. Essa foi uma das dez propostas formalmente entregues pelas centrais
sindicais que compuseram o GT ao governo interino.
Mas já há reação. Matéria do
jornal O Estado de São Paulo no dia 23 de junho informa que uma das
“alternativas” consideradas pelo governo interino na proposta de nova reforma
da previdência é cobrar a contribuição do INSS das empresas do agronegócio. Na
reportagem, no entanto, Roberto Brant, ex-ministro do governo Fernando
Henrique, atual consultor da CNA e coordenador do programa de Michel Temer para
a área — tendo sido o principal cotado para o ministério da previdência, caso
ele não tivesse sido extinto — classificou essa medida como “nonsense”,
argumentando que a reforma precisa priorizar a redução das despesas e não o
aumento de receita.
E não foi só sobre a
previdência rural que a valorização do salário mínimo destacada por Romero teve
impacto. Por isso mesmo, uma das medidas que vem sendo anunciada desde o
programa antecipado do governo interino é impedir que os benefícios
previdenciários e assistenciais continuem tendo reajustes que acompanhem o
salário mínimo. Num texto que, entre outras coisas, ignora o sistema de
financiamento da seguridade social, que garante um caixa próprio, o programa do
PMDB defende: “É indispensável que se elimine a indexação de qualquer benefício
do valor do salário mínimo. (...) Os benefícios previdenciários dependem das
finanças públicas e não devem ter ganhos reais atrelados ao crescimento do
PIB”. Para Sara Granemann, inclusive, essa é a diferença substancial que se
pode destacar entre as propostas que circulavam no governo Dilma e as que se
cogitam agora, durante o governo interino. “Para Temer, há uma fúria de
desvincular e criar um outro índice, sem dizer qual. Se Dilma voltar, talvez
não faça isso”, arrisca, ressaltando, no entanto, que, embora nunca tenha
aparecido como proposta, no governo petista o impacto dessa indexação sempre
era apresentado como problema.
Para
que tudo isso?
Para os especialistas
ouvidos pela Poli, tudo isso aponta um claro processo de privatização e
financeirização da previdência brasileira, que traz muitos riscos para os
trabalhadores. Denise explica que o que se chama de previdência privada é, na
verdade, o investimento num fundo que aplica no mercado financeiro o dinheiro
pago pelos trabalhadores. “Não é previdência, é investimento, com custo alto e
retorno baixíssimo”, denuncia Denise. Diferente da garantia que a previdência
social oferece, aqui pode-se ganhar ou perder. O caso do Postalis, fundo de
pensão dos funcionários dos Correios, é exemplar. Neste exato momento, o fundo
acumula um rombo de quase R$ 7 bilhões que, segundo análises publicadas na
grande imprensa, se devem principalmente a perdas em investimentos de risco,
por exemplo, em títulos de outros países e nas empresas de Eike Batista. Uma
solução proposta foi aumentar em 23 anos a contribuição de todos, inclusive
aqueles que já teriam direito ao benefício. Segundo matéria do jornal O Globo
de março deste ano, isso significaria inclusive uma redução de 18% no
contracheque dos já ‘aposentados’.
Segundo dados da Anfip, em
fevereiro de 1997, o Brasil tinha 255 fundos de pensão que movimentavam R$ 72
bilhões; em dezembro de 2015, são 308 fundos com uma reserva de R$ 685 bilhões.
Isso talvez explique por que, na avaliação de Denise, a proposta de reforma da
previdência nada tenha a ver com fluxo de caixa: trata-se, na verdade, de um
amplo acordo entre Estado e mercado financeiro, que envolve o pagamento dos
juros da dívida pública e o fortalecimento dos fundos de pensão, que se tornaram
um verdadeiro nicho de mercado para o grande capital. “Os governos começam a
divulgar que a previdência está quebrada porque as pessoas vão se sentir
inseguras em usar o serviço público e vão correr para o banco fechar um plano
privado. Com esse discurso, o governo tem empurrado a população para o colo dos
bancos”, explica Denise, que alerta: “Você tem que se perguntar a quem serve
essa reforma”.
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