Retirado do site Jornal GGN
Os eventos em curso na sociedade brasileira e as iniciativas
legislativas em discussão delineiam que a universidade não será, também,
poupada do atual retrocesso democrático. Assim, cabe reconhecer que
“cada nação e cada povo possuem a universidade que merecem. Acabaremos
muito mal, neste terreno, se não soubermos o que queremos e,
principalmente, se não soubermos lutar pelo que queremos”.
O pensamento de Florestan Fernandes expresso quase dez anos antes da
promulgação da Constituição Federal de 1988 nos faz refletir acerca de
um dos grandes temas relegados ao segundo plano pela doutrina
constitucional americana e que no Brasil, apesar da nossa própria “Carta
Cidadã”, em seus artigos 206 e 218, consagrar que o ensino será
ministrado com base na “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e
divulgar o pensamento, a arte e o saber” e no “pluralismo de ideias e de
concepções pedagógicas”, bem como que o Estado, em caráter prioritário,
promoverá e incentivará a pesquisa científica, “tendo em vista o bem
público e o progresso da ciência, tecnologia e inovação”, até hoje não
recebeu a devida análise: a liberdade acadêmica.
Lá, como aqui, a compreensão da liberdade de expressão como gênero ou direito-mãe,
de forma a abranger todas as liberdades comunicativas que lhe são
correlatas, como liberdade de imprensa, liberdade de manifestação do
pensamento, liberdade de culto, etc., não ensejou o merecido estudo da
liberdade acadêmica em si mesma.
Nos EUA, o conceito de liberdade acadêmica foi definido pela
Associação Americana de Professores Universitários (AAUP) em 1915 na
publicação da “Declaração de Princípios sobre a Liberdade Acadêmica e
Liberdade de Cátedra do Professor”, a qual afirmava que esta assegura à
universidade e aos professores universitários “a plena liberdade na
pesquisa e na publicação dos seus resultados”, em prol do “bem comum”.
Essa questão fundamental anima o estudo realizado pelo Reitor da
Escola de Direito da Universidade de Yale, especialista na Doutrina da
Primeira Emenda e em liberdade acadêmica, Robert C. Post, em sua obra Democracy, expertise, and academic freedom: a first amendment jurisprudence for the modern state (2012).
Em detida análise da jurisprudência da Suprema Corte americana,
Robert Post identifica que o primeiro caso a tratar dessa questão foi Sweezy v. New Hampshire (1957).
O respectivo caso relata a história do Professor Paul Sweezy, um
economista marxista, que ao fazer uma série de palestras na Universidade
de New Hampshire, foi denunciado por um colega, sob a alegação de que
suas aulas continham conteúdo socialista e que também participara de
festa com teor político.
A Suprema Corte entendeu que as aulas ministradas pelo professor não
poderiam sofrer qualquer tipo de regulação, pois tal atitude acabaria
pondo em risco o futuro da nação, já que as universidades e seus
estudiosos produzem conhecimento, e este é necessário para a sociedade.
Esta discussão repercute no intuito primeiro do presente artigo:
refletir sobre a proposta de cerceamento da atuação acadêmica nas
universidades brasileiras por parte do Poder Legislativo. Encontra-se em
tramitação na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº 1.411/2015,
apresentado pelo Deputado Federal Rogério Marinho (PSDB-RN), coordenador
da bancada tucana na Comissão de Educação da Câmara, com o propósito de
criar um novo tipo penal: o crime de "assédio ideológico".
No artigo 2° do respectivo Projeto de Lei é definido o pretenso
crime: "Entende-se como Assédio Ideológico toda prática que condicione o
aluno a adotar determinado posicionamento político, partidário,
ideológico ou qualquer tipo de constrangimento causado por outrem ao
aluno por adotar posicionamento diverso do seu, independente de quem
seja o agente". A previsão de detenção da proposta é de 3 meses a 1 ano e
multa, direcionada a professores, psicólogos e coordenadores de
instituições de ensino.
Referida proposição legislativa nos traz à memória o Decreto-Lei
477/69, conhecido como o “AI-5 das universidades”, instituído no auge da
Ditadura Militar, o qual permitiu que agentes repressores pagos pelo
Estado desempenhassem “patrulhamento ideológico”, cerceando a liberdade
de cátedra e monitorando a conduta acadêmica de professores e alunos,
decorrendo daí a expulsão sumária de pessoas apontadas como
participantes de “movimentos subversivos”, dentre elas, o Professor
Titular de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense –
UFF, Daniel Aarão Reis Filho, da UFF, expulso da Faculdade de Direito da
UFRJ e preso, bem como o então professor de sociologia da USP, Fernando
Henrique Cardoso, afastado das suas funções em 1969.
Mas, então, a quem caberia definir o conceito de liberdade acadêmica? Quais seriam os seus limites?
Diante destas questões, Robert Post defende que a verificação deste tipo de competência deve ser estipulada por standards,
criados pelas próprias universidades e seu corpo docente a fim de
construir parâmetros delimitadores das fronteiras da liberdade
acadêmica. Estes, por sua vez, possibilitariam certa proteção à
comunidade acadêmica frente à pressão política da opinião pública.
Acrescenta o autor que a liberdade acadêmica de pesquisa e
publicação, como um valor constitucional, possibilita e legitima a
apresentação e discussão, por parte dos professores, de suas pesquisas e
conclusões. Reforça ainda que a regulação do discurso de professores e
alunos dentro da universidade pode até ser realizada para fins
pedagógicos, porém apenas através de normas técnicas, criadas por um
corpo acadêmico qualificado e sem influência de regras externas, sob
risco de impedir a expansão do conhecimento.
A relevância desta discussão para os dias atuais no Brasil resulta de
uma já demandada reflexão sobre o papel das universidades no contínuo
desafio de influenciar o discurso público e de ser vanguarda do
conhecimento para qualquer país que queira reproduzir tradições laicas e
liberais. Reflete ainda uma necessária demarcação de posição frente à
ascensão de uma onda conservadora na sociedade brasileira que já desenha
uma tendência preocupante de avanço e entranhamento institucional, a
fim de evitar que a liberdade acadêmica seja a próxima fronteira para
determinados setores da sociedade e do Congresso Nacional que
instrumentalizam o fundamentalismo e obscurantismo em suas práticas.
*Rafael Bezerra é Mestre em Teorias Jurídicas Contemporâneas (UFRJ),
Advogado e Pesquisador do Observatório da Justiça Brasileira (OJB/UFRJ)
José Ribas Vieira é Doutor em Direito (UFRJ), Professor Associado da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC Rio), Professor
Associado IV da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Coordenador do
Observatório da Justiça Brasileira (OJB/UFRJ)
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