domingo, 31 de maio de 2015

O Direito pode controlar o poder?

Para Ferdinand Lassalle[1], a resposta era clara: NÃO MESMO! E sua explicação para isso era bem simples. Ele empregava o seguinte raciocínio hipotético (e aqui parafraseio): imagine que, por alguma razão, todas as leis desaparecessem e tivéssemos de elaborar novas regras jurídicas para reger nossa sociedade. Nesse cenário, seria possível editar leis que, por exemplo, contrariassem os interesses dos banqueiros? Não. Porque a atividade dos bancos é tão arraigada na rotina e o crédito é algo tão indispensável para o desenvolvimento das atividades humanas (industriais, econômicas, produtivas, artísticas, laborais etc.) que seria impensável uma organização social que não estivesse respaldada pela atividade bancária. Assim, concluía aquele jurista, que, se, por acaso, se aprovasse uma norma contrária aos interesses dos banqueiros, mais dia menos dia, aquela norma restaria ineficaz, pois contrária ao poder efetivo. Daí o fato de aquele jurisconsulto designar o grupo dos banqueiros como um dos “fatores reais de poder” e dizer que as leis contrárias aos seus interesses seriam meras “folhas de papel” (isto é, formalmente existentes, mas sem nenhuma efetividade prática). Lassalle continua sua narrativa, mencionando diversos outros fatores reais de poder. Mas emprego aqui o exemplo dos banqueiros porque ele é palpavelmente observável no Brasil. Exemplifico: o texto original § 3º do art. 192 da Constituição Federal (que tratava do sistema financeiro nacional, ou seja, em essência, dos bancos) estabelecia:
Art. 192. O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir os interesses da coletividade, será regulado em lei complementar que disporá, inclusive, sobre: § 3º As taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a doze por cento ao ano; a cobrança acima deste limite será conceituada como crime de usura, punido, em todas as suas modalidades, nos termos que a lei determinar.
Parece bem claro, portanto, que as taxas de juros que os bancos poderiam cobrar para emprestar dinheiro não deveriam ultrapassar 12% ao ano, certo? Veja a fatura do seu cheque especial e pense novamente! Já em 07/10/1988 (antes mesmo da entrada em vigor da própria Constituição), foi publicado no DOU (Diário Oficial da União) ato do então Presidente da República que aprovara o parecer SR-70 da Consultoria Geral da República: e o que dizia o famigerado parecer? Que a norma constante do § 3º do art. 192 da CF era de eficácia contida, ou seja: somente poderia ser plenamente aplicada depois que fosse editada a Lei Complementar (LC) a que se referia o caput do art. 192 e que se regulamentasse, no âmbito infraconstitucional, o crime de usura ao qual se referia o próprio § 3º. Em síntese, isso significava que, até a edição da referida LC, os bancos poderiam cobrar (muito) acima da alíquota de 12% ao ano sobre o dinheiro emprestado. E a história não termina aí! Em 07/03/1991, o Supremo Tribunal Federal julgou a ADI nº 4/DF, entendendo que a alíquota de 12% ao ano precisaria, sim, de LC para ser aplicada; em 24/09/2003, aprovou a súmula 648/STF, que reafirmava esse entendimento; e, finalmente, em 11/06/2008, editou a súmula vinculante nº 7/STF (que simplesmente repetia o teor da súmula 648/STF). Vale sublinhar que as duas mencionadas súmulas foram aprovadas mesmo depois do advento da Emenda Constitucional nº 40, de 29/05/2003, que simplesmente retirou do texto constitucional a previsão dos juros de 12% ao ano (o atual art. 192 somente faz vagas referências às LC’s que regulamentarão o sistema financeiro nacional): para garantir que jamais os bancos teriam de se preocupar com aquela alíquota novamente. E o resto da história todos nós sabemos: basta que examinemos os financiamentos bancários que temos a pagar. Parece bem atual agora aquilo foi dito há quatro séculos, não?
Por outro lado, Lassalle também dizia que, nos momentos de desespero, o povo seria um “fator real de poder”: na maior parte do tempo, por ser um poder desorganizado e desunido, seus direitos são violados porque não tem influência efetiva nos rumos do Estado. Mas, nos momentos críticos, o povo mostra sua força em torno de um objetivo comum e demonstra quão superior é em relação a todos os demais fatores reais de poder, ainda que estes se encontrem unidos contra o povo. As grandes conquistas jurídicas expressam movimentos sociais, econômicos, culturais etc.: como o iluminismo (que tantas conquistas carreou aos diversos ramos do Direito e do Estado), a extinção da segregação racial nas escolas (caso Brown vs. Board of Education, julgado pela Suprema Corte estadunidense)... O Direito é expressão do poder: ele espelha a dinâmica de poder em dada época e em determinado espaço. A Alemanha nazista contava com um sistema jurídico formalmente elaborado. Roma, à época que os cristãos eram jogados aos leões, é, ainda hoje, uma inspiração para o atual sistema jurídico brasileiro, bem como a Grécia da era em que, na celebração dionisíaca, as virgens que assim permanecessem até o final dos festejos eram sacrificadas (tempo em que a frase “se quiser ficar viva, então abra as pernas mim” era nitidamente heroica — realidade que seria cômica se não fosse trágica). Tudo isso só mudou, depois de se perpetuar por muito tempo, por causa da modificação da dinâmica dos fatores reais de poder.
A boa notícia, por outro lado, é que está em nossas mãos a mudança. Mudar o Direito é mudar a si mesmo, nossas ideias, nossas práticas... Se você é advogado e quer mais respeito dos magistrados: movimente-se, a maior parte dos profissionais da área jurídica pertence à sua classe e os juízes não poderão ignorar o poder da grande maioria de uma classe profissional (e não precisam ser todos, só a quantidade suficiente). Se você é estagiário e não pode escrever petições (é tratado como transportador de processos), faça o mesmo! Se você é juiz e está sobrecarregado com a quantidade de processos que julga, persista na busca por alternativas: dê decisões contrárias ao entendimento das cortes superiores quando delas discordar, ainda que vinculativas! Se você discorda do Supremo Tribunal Federal: escreva, manifeste-se, leia, estude, organize-se, converse com os outros (familiares, amigos, alunos etc.), busque seu parlamentar, pressione seu deputado, senador, prefeito, governador! Recorra, mesmo que seja contra a jurisprudência dominante! São as ferramentas democráticas que lhe restam. Cada conduta conta! Faça acontecer o momento crítico e histórico de mudança! A batalha é árdua e diária! O Direito pode ser mudado, mas depende da mudança de cada um: o que você anda fazendo para mudar?
Termino este texto com as palavras de Rudolf Von Ihering[2]:
Meu direito é O DIREITO, e, assim, lesado este, aquele também estará lesado, e, defendendo este último, estou defendendo o primeiro. [...] Quando o Direito é desalojado do lugar em que deveria estar, a injustiça não é culpada desse fato, mas sim quem se conformou com essa situação. [...] A luta pelo Direito é um dever do titular interessado para consigo mesmo. A conservação da própria existência é a lei suprema de todo o Universo; na busca da autopreservação, ela está em todas as criaturas.

[1] LASSALLE, Ferdinand. A essência da constituição. 8 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
[2] IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. 8. Ed. (trad.) José Cretella Júnior e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.

*Doutorando pela PUC-SP; Mestre e especialista pelo IDP; Graduado pela Harvard University; Bacharel pelo UniCeub; Advogado; Professor; Autor de livros jurídicos; pesquisador e eterno aluno.

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