Mas, alguns jornalistas
por Celso Vicenzi*
A palavra “mas” é uma conjunção coordenada adversativa, utilizada,
pelo que se lê nas boas gramáticas, em situações que indicam oposição,
sentido contrário. Tem sido empregada, também, com muita insistência,
por boa parte dos jornalistas, principalmente os mais conhecidos
colunistas e comentaristas de jornais e tevês – nacionais e regionais –,
para turvar a realidade. Virou quase um mantra jornalístico.
“A greve é um direito assegurado pela Constituição ao trabalhador
brasileiro, mas…” não deveria prejudicar a população que necessita dos
serviços da categoria, não deveria impedir o direito de ir e vir da
população (muito comum quando ocorre no transporte coletivo); é justa,
“mas” os alunos são os maiores prejudicados (e a culpa cai no colo do
professor e nunca do prefeito, governador ou presidente). “Mas” a crise
na Europa preocupa e não é hora de o governo brasileiro conceder
reajuste de salário aos servidores. Esta a desculpa mais recente. Como
se conclui, a greve é um direito do trabalhador, “mas” só poderá ser
exercida se não ocasionar problema para ninguém, seja o empresário, seja
o governo, seja o povo.
Mas a greve é um instrumento de pressão justamente pelos possíveis
danos (financeiros) ou transtornos (à população e aos usuários dos
serviços em questão) que é capaz de provocar. Infelizmente. Toda a
tensão gerada, numa sociedade democrática e cidadã, deveria resultar em
poder de pressão sobre os empregadores – privados ou públicos –, para
que buscassem, o mais rápido possível, um acordo justo com os grevistas.
“Mas”, com a ajuda determinante da mídia nacional, não é assim que
ocorre. O ônus recai somente sobre o grevista.
A greve dos professores é justa, “mas” os governos e os municípios
não têm como arcar com as despesas. A simples declaração de um
presidente da República, de um governador ou de um prefeito é prova
cabal dessa impossibilidade. Nenhum repórter se interessa em vasculhar
os gastos do poder público, para conferir se existe mesmo essa
impossibilidade.
Nenhum repórter parece se escandalizar quando o STJ determina que os
servidores da Anvisa e do Ministério da Agricultura devem manter 70% do
seu pessoal trabalhando. Mais um pouco e a Justiça brasileira há de
determinar que, sim, podem fazer greve, “mas” que continuem trabalhando…
Ninguém discute que a própria lei de greve da iniciativa privada –
depois estendida para o serviço público, por falta de uma regulamentação
específica – prevê apenas 30% dos trabalhadores atuando em serviços
essenciais. Esta ilegalidade flagrante não interessa à mídia discutir.
Como também não interessa abordar a inconstitucionalidade de transferir
atividades exclusivas do funcionalismo público federal para estados e
municípios, como se fosse possível, de uma hora para outra, substituir
profissionais com conhecimentos muito específicos sobre atividades em
portos, aeroportos e fronteiras, sem pôr em risco a própria segurança da
população.
Cabe aos trabalhadores lutar, sempre, para manter os direitos
conquistados, entre eles, o poder de compra do salário, sob pena de
vê-lo diminuir gradativamente, aumentando na outra ponta o “lucro” do
empregador, seja ele governo ou iniciativa privada. No caso dos
governos, dinheiro que geralmente é transferido, em boa parte, para a
iniciativa privada, sob as mais variadas formas de concessões
(empréstimos subsidiados, isenções fiscais etc.). Não precisa ser nenhum
gênio em economia ou história para saber qual é o lado mais fraco nessa
disputa e o quanto é legítimo lutar para mudar essa correlação de
forças. E é exatamente nessa hora crucial que boa parte dos jornalistas,
sobretudo colunistas e comentaristas, não têm dúvida em ficar do lado
do mais forte.
Basta sacar do bolso um “mas” e não contextualizar informações que
seriam fundamentais para saber se determinado pleito pode ou não ser
atendido. Geralmente, é um festival de clichês, afirmações não
comprovadas, que vão se legitimando e influenciando a opinião pública
pela simples repetição. Não importa que o número de servidores públicos
federais se mantenha praticamente o mesmo há 20 anos, a mídia sempre vai
alertar para o aumento dos gastos públicos, como se não houvesse
nenhuma relação entre número de servidores, salários, órgãos bem
equipados e a qualidade no atendimento à população.
A forma mais comum de falsear a realidade é trabalhar com números
absolutos. No caso recente da greve do serviço público federal, para
citar um exemplo, diz o governo que, se fosse atender a tudo o que pedem
os servidores, iria onerar o caixa do governo em cerca de R$ 92
bilhões. Números atirados a esmo, sem contextualizações, sempre parecem
eloquentes e induzem à conclusão da impossibilidade de estender o
benefício aos trabalhadores.
No entanto, esses mesmos jornalistas, colunistas, comentaristas não
ousam perguntar para onde vai o dinheiro que o país produz, com o suor
de todos os trabalhadores. Por que o governo abriu mão, desde 2008, de
R$ 26 bilhões em impostos para a indústria automotiva? Que, por sua vez,
enviou quase R$ 15 bilhões ao exterior, na forma de lucros e
dividendos?
O “fator previdenciário” retirou mais de R$ 21 bilhões dos
trabalhadores. Quem mais se beneficia, há séculos, é justamente a elite
econômica e a classe política do país, que atuam em parceria. Se isso
não fosse verdade, o Brasil não seria um dos países com a pior
distribuição de renda do planeta.
Valores nominais, insisto, não explicam muita coisa. É preciso sempre
comparar. Ao contrário do que diz a mídia, os gastos do governo federal
com os servidores, em 2000, eram de 4,8% do Produto Interno Bruto
(PIB). Doze anos depois, é menor ainda. A projeção é que feche o ano de
2012 em 4,15%. O país tem hoje praticamente o mesmo número de servidores
do início do governo FHC, e a população que demanda por serviços
cresceu. E há um agravante: quase 50% deve se aposentar nos próximos dez
anos. Como manter serviços de qualidade com órgãos sucateados e sem
profissionais treinados e motivados para o exercício da função? Se isso
vale para a iniciativa privada, deve valer também para a administração
pública.
Somente em isenção fiscal, nos últimos dois anos, o país concedeu
mais de R$ 150 bilhões a pouco mais de uma dúzia de ramos industriais. E
o cofre continua aberto, pois, nas palavras do próprio ministro da
Fazenda Guido Mantega, “qualquer setor que estiver interessado na
desoneração da folha, representado por sua entidade, deve entrar em
contato conosco” (Agência Brasil).
Tudo em nome de boas causas: a manutenção de empregos e o aumento da
competitividade industrial. Sobre lucros que tornam o Brasil um dos
campeões da desigualdade na distribuição de renda, nenhuma linha,
nenhuma palavra. Porque por trás do discurso das “dificuldades” sempre
está a transferência de renda dos trabalhadores para os empregadores.
O mito de que se gasta demais com os servidores públicos federais
também não resiste à observação correta dos números. Quaisquer que sejam
os valores apresentados por quem tenta defender a tese de que o gasto é
excessivo – diferente de se é bem aplicado, porque esta seria uma boa
discussão –, não dá para se contrapor a uma evidência: a Receita
Corrente Líquida, ou seja, o que o governo arrecada em impostos,
comparado com o que o governo paga ao funcionalismo público federal,
diminuiu de 56,2% em 1995 para 32,1% em 2011, conforme registra o
Boletim Estatístico de Pessoal do Ministério do Planejamento.
A mídia, que bate forte na greve do funcionalismo público federal –
como é de praxe em greves de quaisquer trabalhadores –, não demonstra
nenhum interesse em trazer para a opinião pública do país o tema que é
central para esclarecer um “rombo” nas finanças da União, que enriquece
um grupo muito pequeno de investidores e amplia a desigualdade no país: a
dívida pública, superior a R$ 2,1 bilhões por dia!
Em 2011 foram destinados R$ 708 bilhões para a dívida pública que,
aliás, nunca foi auditada, apesar de vários indícios de ilegalidades e
ilegitimidades desde os anos 70, conforme denuncia Maria Lúcia
Fattorelli, da Auditoria Cidadã da Dívida.
Para concluir: no Brasil, a greve é um direito do trabalhador, “mas”
só pode ser exercida se não vier a causar nenhum tipo de prejuízo ou
problema a quem quer que seja. E tem sido cada vez mais regulamentada –
favoravelmente ao capital – pelo Judiciário. Uma espécie de ditadura da
democracia, com jurisprudência legal. Não é sem razão que,
historicamente, quando a justiça não mereceu este nome, grandes avanços
sociais foram feitos, inicialmente, à margem da legalidade.
*Jornalista, assessor de imprensa do Sindicato dos Trabalhadores no Serviço Público Federal no Estado de SC (Sintrafesc)
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