Na zona sul de São Paulo um sítio isolado guarda, esquecido, histórias de terror que podem ser a chave para entender um dos pontos mais obscuros da ditadura – os centros clandestinos de tortura. E a assombrosa colaboração civil
“Você
está em poder do braço clandestino da repressão. Ninguém pode te tirar
daqui”, é o que você ouve quando chega no sítio, depois de mais de uma
hora metido no banco de trás do fusquinha com um capuz quente na cabeça, e a cabeça entre as pernas.
Você foi apanhado na Avenida Brigadeiro Luis Antônio, uma das mais movimentadas de São Paulo. Te enfiaram dentro do carro, dois homens grandes,
meteram o capuz. Então você é todo ouvidos e corpo, e cada balanço ou
ruído vai se gravando na sua mente tão vivo que você se lembrará deles
para o resto da vida.
Minutos depois, pegam a estrada. Tráfego intenso. Saem da cidade,
estradinha de terra, passa um trem, devagar. Quando o carro finalmente
estaciona, você ouve a frase de boas-vindas e, apavorado, consegue memorizar o chão de cimento,
por onde é empurrado antes de ser arremessado por escada que leva a um
lugar subterrâneo. Os seus algozes chamam aquilo de “buraco”, com razão.
Não tijolos, nem paredes, o calor é forteç cada vez que você apalpa à
volta, caem blocos de terra molhada. O chão é lodoso. Seu cativeiro é
úmido e infinito.
Quando te tiram a roupa – você vai ficar assim por muito tempo. Primeiro: o pau-de-arara.
Trata-se de um invento simples, bem brasileiro. Uma barra de ferro
apoiada sobre cavaletes, onde te penduram enrolado, pesando sobre os
braços e pernas. Eles te batem, te chutam, dão choque elétricos; nada de
maquininha de Tio Sam, são fios desencapados que chegam diretamente no
sovaco, na barriga, na boca.
Se divertem com isso, assim como se divertiram desde sempre aqueles que têm o poder de torturar.
Quando você fraqueja, te levam a outra sala – piso de taco – onde
perguntam tudo o que sabe, que atordoado você tenta esconder. Eles não
vão te deixar em paz.
Você se pergunta: por que está ali? É 1975. Já se passaram dez anos
desde o golpe militar no Brasil. O novo governo dos milicos (general Ernesto Geisel) prometia uma volta pacífica à democracia, com um governo civil.
Depois de prender centenas de opositores, mandar milhares para o
exílio e exterminar os grupos de resistência armada, a ditadura começava
a querer ser vista como “ditabranda”. É claro que você não acreditava,
mas estava em todos os jornais. De qualquer forma, você era conhecido
publicamente, não devia temer. Jamais se envolveu na luta armada; advogado, comunista do Partidão (PCB),
foi vereador e deputado federal, você sempre acreditou na política.
Pela sua atuação, já havia sido preso. Mas torturado, jamais. Até o dia 1
de outubro de 1975.
Você
já tinha ouvido falar nesse tipo de lugar. O chachoalhar do carro rumo à
zona rural só confirmou que você iria sofrer mais – que iria morrer.
Não estavam te levando para uma delegacia, onde bem ou mal alguém
poderia te ver e lembrar de você. Estava caindo nos braços clandestinos do horrendo regime militar.
Existiam dezenas de lugares como esse. Eram os centros clandestinos
de tortura. Ao mesmo tempo em que o governo militar começava a falar em
abertura, os milicos e policiais civis usaram esses lugares para seguir
com seu velho método de fazer as coisas. Em meados da década de 70, o
governo falava em acabar com as torturas, e os “teatrinhos”
foram banidos: aquelas cenas de falso tiroteio armadas para encobrir a
morte de gente que fora na verdade morta sob tortura (era assim que os
policias chamavam a encenação descarada).
Nos centros clandestinos, torturava-se em segredo, e não raro se sumia com os corpos. Muitos dos desaparecidos da ditadura brasileira passaram por eles.
Ali, fora do aparato oficial, podia-se massacrar ao ar livre. No seu
caso, a tortura usava o que o sítio tinha a oferecer: as árvores, o
açude, os dois lagos.
Segundo: a sufocação. Eles te levam para um córrego raso, com pedras
no fundo. Ali, soltam água de uma espécie de reservatório e você é
jogado para baixo, ralando nas pedras as feridas do corpo. Terceiro: a
“piscina”, como eles chamam, na verdade um poço lamacento onde te afogam
segurando sua cabeça. Quarto: a árvore. Pendurado pelos pés, você
recebe socos, choque elétricos. Um químico é jogado sobre seu corpo,
arde. Seus gritos se misturam ao de outras pessoas, que você ouve
estarem sendo torturadas – homens, mulheres.
Um dia, te tiram dali, apressadamente. Dizem que seu sumiço foi
denunciado no congresso nacional e na assembléia do Rio de Janeiro. Vão
ter que te liberar. Seu martírio acaba numa casa, na periferia de uma
cidade. Um médico o visita diariamente, para assegurar que você estará
“apresentável” quando for solto.
No dia 22 de outubro de 1975,
finalmente você tira o capuz.
O seu nome é Affonso Celso Nogueira Monteiro. Em 2011, aos 89 anos,
os olhos ainda ficarão opacos quando lembrar daqueles dias e o seu
corpo, envelhecido, guardará ainda todas as marcas. Você é o único
prisioneiro que saiu com vida da Fazenda 31 de Março – nome do sítio
clandestino de tortura, uma homenagem à data do golpe militar de 1964.
Quarenta anos depois, a fazenda continuará lá, com a mesma cara,
esquecida pelo tempo, escondida numa estrada de terra no bairro de
Parelheiros, na zona sul de São Paulo, bem na divisa com Itanhaém e
Embu-Guaçu.
Muitos não tiveram a mesma sorte. Antônio Bicalho Lana e sua
companheira Sônia Moraes, ambos da guerrilha Ação Libertadora Nacional
(ALN), foram assassinados no sítio em 1973. Depois, foram levados até o
bairro de Santo Amaro, onde se encenou um tiroteio – mais um dos
“teatrinhos”. Foram enterrados em vala comum. Ali também mataram o líder
estudantil Antonio Benetazzo, em 1972, preso na Vila Carrão, norte de
São Paulo. A versão oficial, veja, é depois de preso ele teria se jogado
sob as rodas de um caminhão. Foi enterrado como indigente.
Fagundes, o “pacificador”
O
sítio 31 de março é a prova de que existia uma rede de locais
clandestinos de tortura no Brasil nos anos 70. Mas, como grande parte da
história da ditadura militar brasileira, jamais se investigou como e
quando foram usados.
No Brasil, diferente de países vizinhos como Chile e Argentina,
jamais um único militar foi punido pela tortura sistemática adotada pela
ditadura. Naqueles países, lugares como esse viraram museus, memoriais
às vítimas, marcos históricos para que o passado não volte.
Os sítios da tortura só eram possíveis por causa do apoio de civis,
gente endinheirada que apoiava a ditadura e emprestava seu imóveis para a
repressão. Nenhum deles jamais foi levado à justiça.
O “dono” do sítio 31 de Março era um empresário mineiro, Joaquim Rodrigues Fagundes.
Acusado de grileiro, ele se apossou da terra nos primeiros anos da
década de 70. Chegou tocando o terror: junto com capangas, exibiam armas
de uso exclusivo das Forças Armadas, invadiam a casa de moradores,
chegaram a surrar um deles para que “desse o fora”, como se dizia na
época.
Fagundes se gabava de ser amigo do “pessoal do Doi-Codi”,
a central militar que comandava a repressão. Seu caseiro na época,
Alcides de Souza, reconheceu que ele emprestava o sítio para os milicos
fazerem treinamento. “Tem vez que chegam aqui dois mil homens – acampam,
correm pra cá, pra lá, dão tiros, cortam a mata”, disse.
Fagundes era dono da Transportes Rimet Ltd, na Moóca. Sua empresa não
fazia muita coisa. Tinha um único cliente, a estatal Telesp –
Telecomunicações de São Paulo, que na época controlada pelos militares
do governo paulista. Ali na Moóca, era sempre visto acompanhado pelos
bravos amigos de farda, como o coronel Erasmo Dias, conhecido por tere
invadido a universidade católica (PUC) e metido ferro nos estudantes.
Ele mesmo ia uma vez por semana até a sede do Doi-Codi, na rua Tutóia.
“Ele tinha autoridade, andava com os milicos”, lembram os vizinhos.
Quando
não tinha ninguém gemendo ou sufocando, a turminha de Fagundes usava o
sítio para churrascos e almoços festivos. Vinham nomes como mesmo Erasmo
Dias, bem como o Coronel Brilhante Ustra, cujo comando
do Doi-Codi foi marcado por mais de 500 denúncias de tortura, e o
delegado da policia civil Sérgio Paranhos Fleury, que comandava
esquadrões das morte antes da diutadura, e o massacre dos opositores
depois. Só a nata da repressão. “O Fleury era amigão da gente” lembra Alcides, o caseiro.
A ajuda de Fagundes foi reconhecida. Em 30 de junho de 1977, recebeu a
Ordem do Mérito do Pacificador, por “serviços prestado ao país”. O
mineiro tinha tanto orgulho da sua ligação com o exército que, logo
abaixo da placa com o nome da fazenda 31 de Março colocou outra,
dizendo: “proprietário: pacificador Fagundes”.
Jamais foi militar, jamais teve um cargo oficial. E jamais foi chamado a prestar contas pela sua atuação.
Pelo contrário. Em 1984, recebeu uma comenda do Exército,
tornando-se, oficialmente, “comendador”, título que consta ainda hoje na
sua lápide no Cemitério da Quarta Parada, zona leste de São Paulo. O
país agradece.
Por Natalia Viana, da Pública, com Tony Chastinet e Luiz Malavolta
Nenhum comentário:
Postar um comentário