Reproduzindo artigo sobre este verdadeiro patrimônio do povo paraense que no dia de hoje completa 386 anos de sua exstência. Para quem não conhece Belém é uma ótima oportunidade de visualizar a partir dessa leitura o encanto que é o famoso ver-o-peso.
Ver-o-Peso, onde pulsa o coração de Belém
Nelson Pantoja
Autêntica galeria de tipos inusitados, onde se encontra desde o vendedor de
remédios caseiros com sua lábia enganadora prometendo milagres aos transeuntes
até ao cantador de rua, com suas modinhas e boleros, cujos temas são em geral os
mais apelativos possíveis, o tradicional Ver-o-Peso, é na acepção da palavra uma
feira-livre. Nas suas barracas tem de tudo: legumes, frutas, cereais,
peixe-frito, tacacá, caruru e como não poderia deixar de ser, defumação e os mais
vaiados apetrechos umbandistas (colares e outros), para afastar o mau-olhado.
O cheiro penetrante da chicória contrastando com o odor desagradável das poças
de lama; o empurra-empurra da verdadeira multidão de compradores e os gritos dos
vendedores anunciando aos pulmões suas mercadorias "da melhor qualidade e bem
baratinhas"; são vários aspectos da mais famosa feira-livre de toda a Amazônia,
onde cruzam pessoas de todas as idades e das mais variadas camadas sociais.
Devido seu intenso movimento diário, pode-se dizer, sem medo de errar, que o
Ver-o-Peso funciona como uma espécie de órgão impulsionador das transações
comerciais no centro de Belém.
O trabalho começa cedo
As canoas e vigilengas, abarrotadas de frutas e legumes, atracam na escadinha do
Ver-o-Peso às primeiras horas da manhã. A partir daí os vendedores começam a
arrumar suas barracas. Quando o grande número de compradores chega, isto por
volta das 9 horas, período em que o movimento atinge seu ponto máximo, as
frutas, os legumes, os cereais, a farinha, as ervas medicinais e os outros
produtos, já estão todos devidamente distribuídos em suas respectivas barracas.
Os vendedores do Ver-o-Peso são oriundos das mais diversas localidades de nosso
estado. No meio do grande número dos mais autênticos caboclos de nossa região,
uma raça diferente: os nipônicos. Estes em sua maioria vendem legumes e frutas,
sendo famosos entre os compradores por sua melancias. Os vendedores orientais,
inobstante sua cultura totalmente diversa da nossa, devido talvez o contato do
dia-a-dia, se identificam plenamente, com os demais feirantes, principalmente no
tocante à indumentária onde não falta, como detalhe imprescindível, o chapéu de
palha.
Brasileiros de outros lugares também fazem parte do quadro de feirantes do
Ver-o-Peso. De todos se destacam os nordestinos, de uma maneira específica os
cearenses, que arraigados às tradições de sua terra natal, tocam sanfona no meio
da feira, chamando a atenção dos transeuntes que, atraídos por suas cantigas,
formam imensas rodas em volta dos "arigós". A presença da gente do Nordeste é
tão marcante em nossa mais famosa feira, que é fácil de se encontrar chapéus de
cangaceiros sendo vendidos em várias barracas.
Os famosos fluidos
Para quem desconhece é bom saber que o padroeiro do Ver-o-Peso é São Benedito da
Praia, que foi cantado na lírica de Bruno de Menezes, como sendo um preto
bondoso que em qualquer hora de qualquer dia desce de onde se encontra para
adocicar o espírito com umas doses de cana e em meio a mais poderosa das
defumações. Como não poderia deixar de ser, já que assim preconiza a tradição,
esta feira possui também várias casas especialistas em umbanda e quibanda.
Argumentando que é necessário ter conhecimento de causa para ficar à frente de
uma casa especializada em produtos de umbanda, o vendedor Lourival Cavalcante,
da Cabana do seu Zé Raimundo Baú, uma das mais movimentadas da feira,
juntamente com A Milagrosa, disse que o "negócio é tão bom que estou
estabelecido aqui há 4 anos e nem me passa pela cabeça abandonar este comércio".
Entre os produtos vendidos nesta cabana, os mais procurados ontem de manhã,
foram os banhos de cheiro Comigo ninguém pode, Limpa corpo, Atrai
freguês
e Amansa sogra.
Peixe-frito
Às proximidades da escadinha do Ver-o-Peso existe um acentuado número de
barracas onde são preparados no fogão a carvão, o gostoso peixe frito, que sai
diretamente das canoas para a frigideira. O atraente cheiro deste prato
tipicamente ribeirinho exala por grandes distâncias e induz as pessoas por mais
que achem anti-higiênico a provarem um pouquinho. O molho de pimenta e tucupi,
segundo as cozinheiras, é indispensável para aumentar a "gostosura" do peixe
frito na brasa.
"A gente trata com os maiores cuidados possíveis o peixe ante de pô-lo na
frigideira. Dizem que falta higiêne, mas não falta não. As pessoas é que possuem
esta idéia sem cabimento. Aqui em nossas barracas acontece de vez em quando de
almoçarem pessoas que a gente vê que não é daqui do Pará. Os estrangeiros como
gostam de nosso peixe frito. Quando eles comem pedem o molho de pimenta", disse
uma cozinheira.
Tipos diversos
Em linhas gerais, o Ver-o-Peso é uma peculiar aquarela de tipos humanos. Entre
suas barracas se encontra o vendedor de banana com camisa enrolada à altura do
peito e pés descalços: o menino oferecendo sacos de papel; o talhador de peixe
com seu boné característico; o caboclo tostado pelo sol carregando caixas cheias
de piramutabas e os irritante — por vezes simpáticos — vendedores de loterias.
Dentro deste catálogo de tipos, existem aqueles que por suas excentricidades
podem ser classificados como inusitados. Um desses é o camelô.
"Venha conhecer o produto de perto para ver seu baixo preço e sua alta qualidade
ou "compre aqui seu sapato porque não existe outro lugar onde se venda mais
barato", são algumas das inúmeras frases usadas por estes tipos de vendedores
para chamar a atenção dos transeuntes. Aliás, deve-se salientar que com seu
fraseado sui generis e seus exagerados gestos, os camelôs são realmente
exímios "vendedores".
Com óculos de aros de tartaruga e cabelos quase todos brancos, o ancião José Luz
Machado Oliveira, cearense, 92 anos de idade, dos quais 14 dedicados à venda de
remédios no Ver-o-Peso, é um tipo popular da feira. Lúcido ainda, ele aparenta
uma serenidade que faz o freguês ter confiança em seus produtos, tal a convicção
com que diz e enaltece suas qualidades medicinais. Entre os inúmeros produtos
que vende está o sabão de cacau, vindo de Cametá especialmente para ele.
"Não tem coceiras que resista à sua ação. É passar o sabão e vê-las sumirem da
pele. Aqui eu tenho remédios pra tudo. Se a pessoa tem reumatismo, nada melhor
de que óleo de capivara. Se não quiser este, tenho ainda: óleo de anta,
andiroba, óleo de jibóia. Prá tosse e doenças da garganta um bom chá de gengibre
ou de alho-macho, é o melhor remédio, "asseverou o pseudo-químico cearense que
disse ter "conhecido o cativeiro".
A doca do Ver-o-Peso
Conhecida nacional e internacionalmente como o cartão de visita de Belém do
Pará, a doca do Ver-o-Peso, onde atracam as vigilengas, as canoas e outras
embarcações típicas da Amazônia, na verdade em meio ao sortilégio de seu
cotidiano, possui inúmeros fatores positivos mas não deixa de ter também seu
lado negativo. Não resta dúvida que as embarcações que ali, com suas
denominações religiosas (São Carlos, São Benedito, etc) e líricas (Minha Flor,
Deusa de Minha Vida etc.), atracam, são uma atração turística. Seriam,
entretanto, muito mais, se houvesse uma organização na venda dos peixes que é na
realidade uma autêntica azáfama.
Na periferia do Mercado de Ferro existem os vendedores de paneiros, abanos,
peneiras, tipiti e outros, todos feitos de palha da palmeira, salvo engano,
conhecida por jupati. Ao lado disso, o comprador encontra uma variedade enorme
de botes e fogãozinhos de argila, além de cuias para tacacá e mugunzá. As
pessoas de fora, principalmente pelas peculiaridades dos produtos, compram em
grande quantidade. Elas, contudo, não deixam de tecer comentários depreciativos
a uma enorme poça de lama que existe ali perto.
O Trio Família
Uma roda de curiosos formou-se numa das calçadas que circundam a doca do
Ver-o-Peso para assistir e ouvir os tocadores e o cantador do Trio Família,
que a exemplo dos outros grupos de cantadores explora temas populares, dando aos
mesmo o tom mais triste possível. A história do "cadáver da criança encontrada
num bagageiro em Marabá" foi a modinha mais requisitada pelos transeuntes que
para serem atendidos, tem que desembolsar um cruzeiro.
A história
Foi na vertente do rio Piry em meados do século XVII, que as canoas dos
indígenas e as embarcações dos colonos carregadas de iguarias típicas da região
começaram a atracar e serem desembarcadas por seus proprietários. Este processo
natural, com o passar dos anos foi tomando vulto. As autoridades portuguesas
cientes das transações comerciais que neste local estavam sendo efetuadas,
construíram uma modesta repartição destinada a cobrar os impostos devidos à
coroa. Estes eram todos destinados à manutenção da colônia. A fim de traçar um
esquema compatível com a vida dos canoeiros, as autoridades portuguesas
determinaram que os tributos a serem cobrados fossem estipulados pelo peso da
mercadoria. A partir de então, na casa modesta construída na foz do Piry,
exatamente à frente do começo da rua dos Mercadores depois rua da Cadeia e atual
João Alfredo, os colonos e indígenas levavam suas mercadorias para participar do
processo economicamente conhecido como do haver-do-peso. O tempo passou e o
linguajar popular consagrou o local como sendo o "Ver-o-Peso", que desta maneira
é importante para Belém por ser um marco histórico, paisagístico, tradicional,
geográfico e econômico. Recentemente teve sua importância aumentada, porquanto
foi reconhecido nacionalmente como um ponto turístico de Santa Maria de Belém
do Grão Pará.
(Pantoja. Nelson. "Ver-o-Peso, onde pulsa o coração de Belém". A Província do Pará. Belém, 21 de agosto de 1976)
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