quarta-feira, 27 de março de 2013

386 anos do Ver-o-peso

Reproduzindo artigo sobre este verdadeiro patrimônio do povo paraense que no dia de hoje completa 386 anos de sua exstência. Para quem não conhece Belém é uma ótima oportunidade de visualizar a partir dessa leitura o encanto que é o famoso ver-o-peso.


Ver-o-Peso, onde pulsa o coração de Belém

Nelson Pantoja

Autêntica galeria de tipos inusitados, onde se encontra desde o vendedor de remédios caseiros com sua lábia enganadora prometendo milagres aos transeuntes até ao cantador de rua, com suas modinhas e boleros, cujos temas são em geral os mais apelativos possíveis, o tradicional Ver-o-Peso, é na acepção da palavra uma feira-livre. Nas suas barracas tem de tudo: legumes, frutas, cereais, peixe-frito, tacacá, caruru e como não poderia deixar de ser, defumação e os mais vaiados apetrechos umbandistas (colares e outros), para afastar o mau-olhado.

O cheiro penetrante da chicória contrastando com o odor desagradável das poças de lama; o empurra-empurra da verdadeira multidão de compradores e os gritos dos vendedores anunciando aos pulmões suas mercadorias "da melhor qualidade e bem baratinhas"; são vários aspectos da mais famosa feira-livre de toda a Amazônia, onde cruzam pessoas de todas as idades e das mais variadas camadas sociais. Devido seu intenso movimento diário, pode-se dizer, sem medo de errar, que o Ver-o-Peso funciona como uma espécie de órgão impulsionador das transações comerciais no centro de Belém.

O trabalho começa cedo

As canoas e vigilengas, abarrotadas de frutas e legumes, atracam na escadinha do Ver-o-Peso às primeiras horas da manhã. A partir daí os vendedores começam a arrumar suas barracas. Quando o grande número de compradores chega, isto por volta das 9 horas, período em que o movimento atinge seu ponto máximo, as frutas, os legumes, os cereais, a farinha, as ervas medicinais e os outros produtos, já estão todos devidamente distribuídos em suas respectivas barracas.

Os vendedores do Ver-o-Peso são oriundos das mais diversas localidades de nosso estado. No meio do grande número dos mais autênticos caboclos de nossa região, uma raça diferente: os nipônicos. Estes em sua maioria vendem legumes e frutas, sendo famosos entre os compradores por sua melancias. Os vendedores orientais, inobstante sua cultura totalmente diversa da nossa, devido talvez o contato do dia-a-dia, se identificam plenamente, com os demais feirantes, principalmente no tocante à indumentária onde não falta, como detalhe imprescindível, o chapéu de palha.
Brasileiros de outros lugares também fazem parte do quadro de feirantes do Ver-o-Peso. De todos se destacam os nordestinos, de uma maneira específica os cearenses, que arraigados às tradições de sua terra natal, tocam sanfona no meio da feira, chamando a atenção dos transeuntes que, atraídos por suas cantigas, formam imensas rodas em volta dos "arigós". A presença da gente do Nordeste é tão marcante em nossa mais famosa feira, que é fácil de se encontrar chapéus de cangaceiros sendo vendidos em várias barracas.

Os famosos fluidos

Para quem desconhece é bom saber que o padroeiro do Ver-o-Peso é São Benedito da Praia, que foi cantado na lírica de Bruno de Menezes, como sendo um preto bondoso que em qualquer hora de qualquer dia desce de onde se encontra para adocicar o espírito com umas doses de cana e em meio a mais poderosa das defumações. Como não poderia deixar de ser, já que assim preconiza a tradição, esta feira possui também várias casas especialistas em umbanda e quibanda.

Argumentando que é necessário ter conhecimento de causa para ficar à frente de uma casa especializada em produtos de umbanda, o vendedor Lourival Cavalcante, da Cabana do seu Zé Raimundo Baú, uma das mais movimentadas da feira, juntamente com A Milagrosa, disse que o "negócio é tão bom que estou estabelecido aqui há 4 anos e nem me passa pela cabeça abandonar este comércio". Entre os produtos vendidos nesta cabana, os mais procurados ontem de manhã, foram os banhos de cheiro Comigo ninguém pode, Limpa corpo, Atrai freguês e Amansa sogra.

Peixe-frito

Às proximidades da escadinha do Ver-o-Peso existe um acentuado número de barracas onde são preparados no fogão a carvão, o gostoso peixe frito, que sai diretamente das canoas para a frigideira. O atraente cheiro deste prato tipicamente ribeirinho exala por grandes distâncias e induz as pessoas por mais que achem anti-higiênico a provarem um pouquinho. O molho de pimenta e tucupi, segundo as cozinheiras, é indispensável para aumentar a "gostosura" do peixe frito na brasa.

"A gente trata com os maiores cuidados possíveis o peixe ante de pô-lo na frigideira. Dizem que falta higiêne, mas não falta não. As pessoas é que possuem esta idéia sem cabimento. Aqui em nossas barracas acontece de vez em quando de almoçarem pessoas que a gente vê que não é daqui do Pará. Os estrangeiros como gostam de nosso peixe frito. Quando eles comem pedem o molho de pimenta", disse uma cozinheira.

Tipos diversos

Em linhas gerais, o Ver-o-Peso é uma peculiar aquarela de tipos humanos. Entre suas barracas se encontra o vendedor de banana com camisa enrolada à altura do peito e pés descalços: o menino oferecendo sacos de papel; o talhador de peixe com seu boné característico; o caboclo tostado pelo sol carregando caixas cheias de piramutabas e os irritante — por vezes simpáticos — vendedores de loterias. Dentro deste catálogo de tipos, existem aqueles que por suas excentricidades podem ser classificados como inusitados. Um desses é o camelô.

"Venha conhecer o produto de perto para ver seu baixo preço e sua alta qualidade ou "compre aqui seu sapato porque não existe outro lugar onde se venda mais barato", são algumas das inúmeras frases usadas por estes tipos de vendedores para chamar a atenção dos transeuntes. Aliás, deve-se salientar que com seu fraseado sui generis e seus exagerados gestos, os camelôs são realmente exímios "vendedores".

Com óculos de aros de tartaruga e cabelos quase todos brancos, o ancião José Luz Machado Oliveira, cearense, 92 anos de idade, dos quais 14 dedicados à venda de remédios no Ver-o-Peso, é um tipo popular da feira. Lúcido ainda, ele aparenta uma serenidade que faz o freguês ter confiança em seus produtos, tal a convicção com que diz e enaltece suas qualidades medicinais. Entre os inúmeros produtos que vende está o sabão de cacau, vindo de Cametá especialmente para ele.

"Não tem coceiras que resista à sua ação. É passar o sabão e vê-las sumirem da pele. Aqui eu tenho remédios pra tudo. Se a pessoa tem reumatismo, nada melhor de que óleo de capivara. Se não quiser este, tenho ainda: óleo de anta, andiroba, óleo de jibóia. Prá tosse e doenças da garganta um bom chá de gengibre ou de alho-macho, é o melhor remédio, "asseverou o pseudo-químico cearense que disse ter "conhecido o cativeiro".

A doca do Ver-o-Peso

Conhecida nacional e internacionalmente como o cartão de visita de Belém do Pará, a doca do Ver-o-Peso, onde atracam as vigilengas, as canoas e outras embarcações típicas da Amazônia, na verdade em meio ao sortilégio de seu cotidiano, possui inúmeros fatores positivos mas não deixa de ter também seu lado negativo. Não resta dúvida que as embarcações que ali, com suas denominações religiosas (São Carlos, São Benedito, etc) e líricas (Minha Flor, Deusa de Minha Vida etc.), atracam, são uma atração turística. Seriam, entretanto, muito mais, se houvesse uma organização na venda dos peixes que é na realidade uma autêntica azáfama.

Na periferia do Mercado de Ferro existem os vendedores de paneiros, abanos, peneiras, tipiti e outros, todos feitos de palha da palmeira, salvo engano, conhecida por jupati. Ao lado disso, o comprador encontra uma variedade enorme de botes e fogãozinhos de argila, além de cuias para tacacá e mugunzá. As pessoas de fora, principalmente pelas peculiaridades dos produtos, compram em grande quantidade. Elas, contudo, não deixam de tecer comentários depreciativos a uma enorme poça de lama que existe ali perto.

O Trio Família

Uma roda de curiosos formou-se numa das calçadas que circundam a doca do Ver-o-Peso para assistir e ouvir os tocadores e o cantador do Trio Família, que a exemplo dos outros grupos de cantadores explora temas populares, dando aos mesmo o tom mais triste possível. A história do "cadáver da criança encontrada num bagageiro em Marabá" foi a modinha mais requisitada pelos transeuntes que para serem atendidos, tem que desembolsar um cruzeiro.

A história

Foi na vertente do rio Piry em meados do século XVII, que as canoas dos indígenas e as embarcações dos colonos carregadas de iguarias típicas da região começaram a atracar e serem desembarcadas por seus proprietários. Este processo natural, com o passar dos anos foi tomando vulto. As autoridades portuguesas cientes das transações comerciais que neste local estavam sendo efetuadas, construíram uma modesta repartição destinada a cobrar os impostos devidos à coroa. Estes eram todos destinados à manutenção da colônia. A fim de traçar um esquema compatível com a vida dos canoeiros, as autoridades portuguesas determinaram que os tributos a serem cobrados fossem estipulados pelo peso da mercadoria. A partir de então, na casa modesta construída na foz do Piry, exatamente à frente do começo da rua dos Mercadores depois rua da Cadeia e atual João Alfredo, os colonos e indígenas levavam suas mercadorias para participar do processo economicamente conhecido como do haver-do-peso. O tempo passou e o linguajar popular consagrou o local como sendo o "Ver-o-Peso", que desta maneira é importante para Belém por ser um marco histórico, paisagístico, tradicional, geográfico e econômico. Recentemente teve sua importância aumentada, porquanto foi reconhecido nacionalmente como um ponto turístico de Santa Maria de Belém do Grão Pará.

(Pantoja. Nelson. "Ver-o-Peso, onde pulsa o coração de Belém". A Província do Pará. Belém, 21 de agosto de 1976)

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