Ouvir Eduardo Cunha falando de valores republicanos soaria irônico, não fosse trágico. O presidente da Câmara defendeu em artigo recente nesta Folha
temas como a independência dos poderes, reformas política e tributária e
a realização do debate democrático. Quem não o conhece, que compre.
A
trajetória de Cunha é recheada de eventos bem pouco apropriados a um
guardião da República. E nos ajuda a entender que tipo de interesse está
por trás de seu discurso de mudanças legislativas.
Em 1989,
Cunha foi o responsável financeiro do Comitê de campanha de Collor no
Rio de Janeiro. Como retribuição ganhou o cargo de presidente da Telerj. Após a saída de Collor, foi exonerado por conta de um esquema de
superfaturamento em contrato da companhia com a empresa NEC, que recebeu
aditivo de US$ 92 milhões. Ainda por sua atuação na Telerj foi um dos
44 indiciados na investigação do Esquema de PC Farias.
Em 2000,
reaparece nas páginas policiais após ter que deixar a presidência da
Companhia Estadual de Habitação do Rio por conta de denúncias de
corrupção. Desta vez foi acusado de realizar contratos sem licitação e
favorecimento de empresas fantasmas. Instado a explicar a
incompatibilidade entre seus gastos e a renda declarada no período,
alegou um suposto empréstimo do banco Boreal.
Talvez uma
coincidência da vida, mas o banco Boreal pertence ao mesmo grupo que
controla a operadora portuária Libra, beneficiada anos depois pelas
manobras estridentes de Cunha no debate da MP dos Portos.
Em
2005, foi aberta a CPI dos Correios que desencadeou o escândalo do
mensalão. E lá estava Cunha. Foi associado ao doleiro Lucio Funaro, cujo
esquema com corretoras esteve ligado ao rombo de R$ 309 milhões do
fundo de pensão carioca Prece. Foi descoberto que o doleiro, que
tornou-se delator do mensalão, pagava o aluguel de um luxuoso flat para
Cunha em Brasília.
A parceria mostrou-se sólida. Em 2007, quando
Cunha emplacou a indicação do ex-prefeito do Rio Luiz Paulo Conde como
presidente de Furnas, a empresa pública foi levada a fazer um negócio
escandaloso, denunciado quatro anos mais tarde.
Pouco depois da
posse de Conde, Furnas abriu mão de adquirir um lote de ações por R$ 6,9
milhões. Oito meses mais tarde adquiriu o mesmo lote, de outra empresa,
por R$ 80 milhões. R$ 73 milhões de ágio. Quem foi a empresa felizarda?
A companhia Serra da Carioca II, do Grupo Gallway, dirigido por… Lucio
Funaro, operador de Cunha.
Todas essas denúncias são públicas,
assim como as acusações de seu envolvimento numa negociata imobiliária
com o traficante colombiano Juan Carlos Abadia e sua relação com
políticos acusados de dirigirem milícias no Rio de Janeiro. No entanto,
nada disso o impediu de tornar-se o chefe do Poder Legislativo do país e
de querer ainda aplicar sermões republicanos.
Responde a
processos criminais no STF e no Tribunal de Justiça do Rio por
improbidade administrativa, compra de votos e crime tributário, dentre
outros. Homem de bons amigos, até agora saiu sempre ileso. Foi citado
nos vazamentos da Lava a Jato. Resta saber se estará na denúncia do
Ministério Público ou se passará assobiando novamente.
Mas Cunha
não é uma anomalia: é expressão da captura das funções públicas pelos
interesses privados. O financiamento empresarial de campanha sempre
permitiu aos grupos econômicos construírem suas bancadas.
A
bancada ruralista, a da bala, das empreiteiras, dos empresários da
educação ou dos planos de saúde são notórias e têm cada qual seu time de
parlamentares.
O diferencial de Cunha – que espanta pela ousadia
– é ter-se constituído numa espécie de gerente de várias bancadas de
interesse. Mantém relação e obtém financiamento de empresas de vários
setores, atuando como um curinga dos negócios privados no Legislativo.
Daí suas sólidas amizades.
Daí também ter um poder de arrecadação
eleitoral que o permitiu terceirizar o financiamento para outros
deputados. Arrecada das empresas e financia campanhas de colegas.
Constituiu assim uma bancada própria, com a fidelidade que o dinheiro
assegura nesses casos.
Diante disso não é preciso muito para
compreender que a reforma política proposta por ele não tocará no ponto
essencial da corrupção, que é o modelo de financiamento das campanhas.
Ao contrário, buscará enxertar por uma PEC o financiamento empresarial
na Constituição,
anulando os efeitos da ADI 4650, que já tem maioria no Supremo. Gilmar
Mendes mata no peito e Cunha faz o gol. Pena que contra.
Já sua
“reforma tributária” nem passará perto da distorção regressiva de nosso
modelo, no qual os ricos pagam proporcionalmente menos impostos que os
pobres no país. Muito provavelmente, dada suas relações, tentará
desonerar ainda mais o capital. Na verdade, tratam-se nos dois casos de
contrarreformas.
A condução de Eduardo Cunha à presidência da
Câmara mata qualquer ilusão de que este Congresso realizará as reformas
almejadas pela maioria do povo brasileiro. Ou virão da mobilização das
ruas ou simplesmente não ocorrerão.
Por Guilherme Boulos
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