Pela primeira vez na
nossa história o fim de um ciclo no Brasil está ligado à Justiça (que
acaba de convalidar as delações premiadas de A. Youssef). A
independência (1822) acabou (em termos) com o colonialismo (1500-1822); a
lei áurea (1888) foi o golpe mortal do Império (1822-1889); Getúlio
(1930) aniquilou a Primeira República (oligárquica, do “café com
leite”); a democracia populista e patricial (1945-1964) liquidou o
Estado Novo autoritário; a ditadura civil-militar (1964) derrotou o
chamado (e controvertido) “risco do comunismo”; as delações premiadas
(2015) estão detonando os senhores neofeudais donos do poder e da Nova
República.
Já
foram feitas 22 delações e podem ainda acontecer mais umas 30 ou 40,
disse o PGR. Elas estão no epicentro da implosão de mais um ciclo da
nossa existência coletiva. Depois de 30 anos (1985-2015), a Nova
República (redemocratização) chegou ao ápice do seu esgotamento, com
dezenas de empresários, altos funcionários e ex-políticos na cadeia. Não
podemos continuar chamando de destino todas as asneiras que cometemos
na nossa construção política, econômica e social. “Quando um barco [dá
sinais evidentes de que] começa a afundar, não reze. Abandone-o” (Max
Gunther). É preciso colocar um ponto final na Nova República.
As
crises todas que estamos vivendo (que não são novidade, diga-se de
passagem), vistas em seu conjunto, vão muito além das “roubalheiras do
PT” (que aprimorou, aprofundou e institucionalizou a corrupção no
aparelhamento do Estado, mas não a inventou). A corrupção sistêmica é
uma das marcas registradas de todos os governos da redemocratização
(Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma). “Não importa a distância já
percorrida na estrada errada, volte [ou mude de rumo]” (Provérbio
turco).
Quem diria que as delações premiadas fossem produzir
tanta eficácia a ponto de detonar a Nova República, assim como as bombas
atômicas dizimaram Hiroshima. O STF, por unanimidade, acaba de
convalidar a homologação das delações feitas por Youssef. O ato
homologatório de Teori Zavascki não tem nada de nulidade. Youssef é
apontado como um dos principais organizadores do esquema de desvio de
recursos da Petrobras. Foi a partir das delações dele que o STF abriu a
maioria dos inquéritos contra 35 congressistas suspeitos de ligação com a
criminalidade organizada dentro da estatal. Um “conluio de
delinquentes” assaltaram a Petrobras (disse o ministro Celso de Mello).
De
qualquer modo, as delações não são provas, enquanto não comprovadas
dentro do devido processo legal (com todas as garantias). Não se admite
condenação penal quando a única prova residir na prova de agente
colaborar. Mesmo que se associem a outros depoimentos, não importa
(Celso de Mello – STF, HC 127.483).
A suposta inidoneidade de
Alberto Youssef para firmar acordo de delação depois de descumprir a
cláusula de não voltar a delinquir, incluída em colaboração anterior,
foi refutada pelo STF (por unanimidade). O ministro Dias Toffoli
explicou que a idoneidade não se verifica em razão dos antecedentes
criminais, mas sim em decorrência da comprovação das informações
resultantes da colaboração. Até porque, destacou, os delatores são
pessoas envolvidas em delitos que têm como objetivo a redução das
sanções penais ou a obtenção de benefícios nas condenações a que venha
sofrer.
Gilson Dipp, num parecer (veja Conjur), opinou
pela derrubada das delações de Youssef por falta de credibilidade
(sobretudo porque ele já quebrara delação anterior). O paradigma do
direito penal brasileiro, por decisão do poder político (Executivo e
Legislativo), se alterou: a palavra (delação) dos ladrões passou a ter
grande relevância no nosso sistema penal (tudo depende do quanto que o
delatado é comprovado em juízo). O Estado falido e moralmente carcomido
(em virtude da baixa estatura moral das bandas podres e cleptocratas dos
seus donos econômicos, financeiros e políticos) necessita das
informações do ladrão, como o paciente de hemodiálise carece de sangue. O
Estado brasileiro jogou a toalha. Para mostrar eficácia, precisa contar
com a ajuda dos ladrões. É por meio deles que se está chegando aos
barões-ladrões.
No novo paradigma penal, quanto mais ladrão seja o
agente (posto que tem mais informações), mais útil ele será. Quanto
mais ladrão, mais informações e quanto mais informações, mais provas e
quanto mais provas, mais “prêmios” para o delator e mais penas para os
delatados. Essa é a dinâmica do direito premial. O mais premiado será
sempre o ladrão mais festejado. Quem não sabe que o ladrão,
especialmente o do erário, de pronto, não tem credibilidade? Mas isso é o
que menos importa para o novo sistema de “Justiça” criminal. Entramos
definitivamente na era do “direito líquido” (Bauman). A pós-modernidade
corre por entre os dedos. O sistema jurídico Hermes (descrito pelo belga
François Ost) é flexível, comunicativo e volátil. Algo mais profano
seria impossível. A lógica da nova Justiça é peculiar. De qualquer modo,
“A lógica, como o whisky, perde seu efeito benéfico quando tomada em
quantidades exageradas” (Lord Dunsany).
O artigo 86, § 12º, da Lei 12.529/2011
(tanto quanto a nova lei anticorrupção), traz a sanção da “quarentena”
(de 3 anos) àquele que descumpra o acordo de leniência nos casos de
carteis ou das pessoas jurídicas que geram danos ao Estado.
Diferentemente, a Lei 12.850/2013
(Lei de Combate às Organizações Criminosas) não previu essa sanção de
“quarentena”. Quem já quebrou delação anterior pode fazer uma nova (no
mundo da criminalidade organizada). Interpretação contrária (como
pretende o ex-ministro Dipp) seria analogia contra o réu (in malam partem).
Totalmente inconstitucional, portanto. O valor da delação está
diretamente ligado às provas que dela podem emanar. Por mais ladrão e
mau-caráter que seja a pessoa, se suas informações forem confirmadas por
provas indiscutíveis, mais prêmio ele vai receber. Esse é o espírito do
novo sistema. Não há nulidade nisso nem prova ilícita por essa razão,
desde que o juiz jamais condene qualquer pessoa só com base na delação.
A
falta de credibilidade do delator não constitui razão legal para o juiz
recusar a homologação da delação. Por isso que Teori Zavascki (do STF)
homologou a colaboração de Youssef. Frise-se que o acordo de colaboração
premiada pretende colher provas ou elementos de prova a fim de alcançar
os resultados nela previstos. Mais utilitarismo impossível. De
escanteio ficou a polêmica sobre a ética. A delação em si não serve de
prova. Pouco importa, portanto, de acordo com o novo sistema de
“Justiça”, que o delator seja impoluto ou cafajeste. A qualidade do
agente, por si só, não contamina a delação, se dela a Justiça consegue
provas do crime investigado, recuperação dos bens surrupiados e
ressarcimento dos danos causados. Tudo isso já acontece nos EUA
intensivamente desde o final do século XIX. “Não há nada novo sob o sol,
mas há muitas coisas velhas que não conhecemos” (Ambrose Bierce).
Para
o STF a quebra de um acordo não impede que outro seja celebrado, caso o
Ministério Público considera a participação relevante, porque ele não
interfere no teor dos depoimentos dos colaboradores. Isso porque a
homologação valida apenas o acordo que traz benefícios e obrigações para
o delator, sem confirmar o teor das declarações.
Lewandowski foi
mais longe: o fato de as delações serem fechadas com delatores ainda
presos não anula necessariamente a delação. Segundo o procurador-geral
da República, Rodrigo Janot, 30% das delações foram fechadas com pessoas
ainda presas. “A prisão por si só não vicia a vontade do delator. Mas
isso não impede que o delator comprove que sofreu algum constrangimento a
comprometer a livre manifestação de sua vontade, com familiares
ameaçados, acometidos por doença, esse ato por ter natureza negocial não
subsistirá”, disse Lewandowski.
Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil
Nenhum comentário:
Postar um comentário