Em 1978, quando levou seu show "Transversal do Tempo" para Recife, Elis participou de um ato público promovido por Dom Helder Câmara e "driblou" a polícia para homenagear o líder estudantil Edival Nunes, o Cajá
“Elis era temperamental. Não levava desaforo para casa”. Essas duas
frases viraram clichês para definir a personalidade de Elis Regina
(1945-1982). Alguns viam nisso a força que ela sempre impôs para a sua
carreira. Outros enxergam suas atitudes com reservas. O certo é que
Elis, cuja morte completa 30 anos nesta quinta-feira (19), comprava não
só suas brigas, como as dos outros também.
Um dos casos mais famosos em que Elis mostrou seu temperamento ocorreu
em 1976, quando a cantora Rita Lee foi presa acusada de porte de
maconha. Quando soube do fato, Elis decidiu ir ao Presídio do Hipódromo,
na região central de São Paulo, para visitar a companheira de
profissão. Em plena ditadura militar, fez um escândalo, pediu para ver a
cantora e exigiu que um médico examinasse Rita, que estava grávida.
Mas nem só famosos contavam com o apoio de Elis. Um outro episódio, esquecido e revelado recentemente pela revista Continente,
ocorreu no Recife, em 1978 , durante o governo de Ernesto Geisel. Elis
estava na cidade para apresentações do show "Transversal do Tempo", que
tinha um roteiro com viés político e de forte crítica social. Lá, quis
se encontrar com Dom Helder Câmara (1909 –1999), à época arcebispo de
Olinda e Recife, conhecido por sua atuação contra as violações de
direitos humanos no Brasil, em especial durante a ditadura.
Quem aproximou Elis e Dom Helder foi a atriz e especialista em cultura
popular Leda Alves. Elis a procurou por indicação de Frei Betto. Por
coincidência, neste mesmo dia, à noite, haveria uma missa em favor da
libertação do líder estudantil Edval Nunes da Silva, o Cajá, que havia
sido preso em maio de 1978, na capital pernambucana, acusado de tentar
reorganizar o Partido Comunista Revolucionário. Elis decidiu que
participaria do ato religioso. E assim o fez. Subiu ao altar da Matriz
de São José e entoou os cânticos da celebração. “Estávamos em plena
ditadura e, mesmo assim, ela não se intimidou”, diz Leda, que se tornou
amiga de Elis. Depois da missa, a Elis foi à sacristia conhecer Dom
Helder. “Ela estava muito interessada no trabalho que ele fazia em
defesa dos direitos humanos”, afirma Leda.
No dia do primeiro show da temporada que faria em Recife, Elis decidiu
dedicar o show ao estudante Edival Nunes da Silva, o Cajá. A homenagem
rendeu a Elis uma repreensão da polícia local, que ameaçou impedir suas
apresentações seguintes. No segundo show, Elis arrumou um jeito de falar
o apelido do líder estudantil. Segundo o próprio Cajá, o que foi lhe
contado depois é que Elis entrou no palco com a banda desfalcada do
baterista. Alegando que não poderia começar o show sem um de seus
músicos, perguntou por ele. Alguém apontou o músico sentando em uma das
poltronas do Teatro Santa Isabel. Elis, marota, teria dito. ‘Vem cá, já.
Não posso começar o espetáculo sem você’. “O público logo entendeu o
recado e aplaudiu o ato de Elis”, diz Cajá, que hoje é sociólogo e tem
61 anos.
Antes de deixar o Recife, Elis ainda tentou visitar o estudante na
prisão. Não conseguiu. Optou por escrever uma carta. Na correspondência,
escrita em um papel timbrado do hotel onde Elis se hospedou, o Othon
Palace, Elis dizia para Cajá não esmorecer e continuar a lutar pela
liberdade. Para Cajá, o ato de Elis foi ‘iluminado’. “Depois de Elis,
outros artistas tentaram me visitar, como os atores Bruna Lombardi e
Cláudio Cavalcanti”, afirma. “Ela tinha um compromisso com o que há de
mais bonito no ser humano: a liberdade”, diz Cajá.
Cerca de três meses após sua saída da prisão, em junho de 1979, Elis
voltou ao Recife para uma apresentação e tentou marcar um almoço com
Cajá. Ele, que havia acabado de se tornar pai, não pode comparecer, mas
disse que, posteriormente, iria a São Paulo se encontrar com a cantora. O
encontro dos dois nunca aconteceu . Em 19 de janeiro de 1982, o
sociólogo, em meio a uma reunião da União Nacional dos Estudantes, foi
surpreendido pela notícia da morte de Elis. No próximo mês de março,
quando Elis completaria mais um aniversário, ele pretende realizar um
show com artistas locais em homenagem à amiga.
Retirado da Revista Época
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