Por Carlos Latuff
Este texto é um desabafo. Não pretendo
que seja uma análise aprofundada. Outros artigos estão sendo escritos
com esse propósito, por gente bem mais capacitada que eu. Expresso aqui a
revolta que contamina meu coração desde domingo passado, quando acordei
com a notícia de que os milhares de moradores do Pinheirinho, em São
José dos Campos, estavam sendo desalojados.
Estive lá na semana passada, numa visita
de solidariedade àquelas pessoas que estavam na iminência de serem
despejadas de um terreno que ocupavam desde 2004. A juíza Márcia Faria
Mathey Loureiro, da 6ª Vara Cível de São José dos Campos, assinou a
reintegração de posse (pomposo termo jurídico para despejo) em favor do
senhor Naji Robert Nahas, notório especulador cujo nome aparece nas
manchetes de jornal associado a crimes como lavagem de dinheiro,
formação de quadrilha e evasão de divisas.
Foram muitos os esforços para tentar
deter o despejo, de advogados que se voluntariaram a ajudar os moradores
do Pinheirinho, até sindicalistas, militantes de partidos de esquerda,
movimento dos sem-teto, dos sem-terra, parlamentares, artistas como o
rapper Emicida. Formou-se uma verdadeira rede de apoio, como há muito eu
não via. Fiz questão de visitar o Pinheirinho porque queria fazer mais
por aqueles moradores do que simplesmente desenhar charges. Fiz questão
tambem de registrar imagens da ocupação, sempre mostrada pela imprensa
como um acampamento de rebeldes que armados de paus e pedras se
recusavam a acatar pacificamente uma ordem judicial.
O que encontrei não foi surpresa. Estive
em visita a ocupações urbanas e rurais por algumas vezes na vida. Os
moradores do Pinheirinho me lembravam os camponeses que conheci em
Rondônia e no Paraguai. Aqueles olhares, os sorrisos de boas vindas e os
pés descalços, gente humilde, de poucos recursos mas de muita coragem,
que precisa de terra pra viver, e não para a especulação imobiliária. No
Pinheirinho conheci uma família que saiu do interior da Bahia, onde
sobreviviam do que conseguiam achar num lixão, e que construíram uma
vida nova a custa de muito trabalho. O pai catando materiais
recicláveis, a mãe vendendo secos e molhados em casa e a filha fazendo
fraldas descartáveis. Tenho até hoje o papelzinho com o preço das
fraldas. Conheci também o seu Jaime, um paranaense que veio com a
família, e que me mostrou orgulhoso a horta que cuidou com tanto
carinho, incluindo os pés de café que trouxe do Paraná. Visitei a Pamela
e sua filhinha de 30 dias, e vi seu quintal, todo decorado pelo seu
companheiro com brinquedos coloridos.
Vi crianças jogando bola, brincando no
chão de terra enlameado depois da chuva, vi a jovem mãe levando seu
filho no carrinho, tentando desviar das poças de lama. Com um celular ia
compartilhando estas imagens com os internautas. Queria que todos
vissem de que se tratava de gente, de carne, osso e alma, e não apenas
figuras sem nome no noticiário da TV. Por esse exercício de humanidade
não passam os que usam suas canetas de ouro para assinar ordens de
despejo, nem tão pouco os policiais que as cumprem.
É comum a gente imaginar que por trás
dessas decisões judiciais estejam figuras engravatadas que tem prazer em
desalojar famílias pobres, que acham graça, riem, fazem piada, como
vilões de filmes ou histórias em quadrinhos. Cheguei a conclusão de que
não é bem assim. O despejo dos 9000 residentes daquele terreno foi uma
ação burocrática, desprovida de sentimento.
Fora os policiais militares,
esses sim, que tem prazer em seu ofício brutal, os burocratas sequer
tem contato com as vidas que destroem. As famílias do Pinheirinho são
apenas obstáculos a serem removidos. Quando faço charges associando tais
ações ao nazismo é porque identifico nelas a mesma ausência de
humanidade. Penso em Adolf Eichmann e a tranquilidade com que descrevia o
processo pelo qual deportou milhares para campos de concentração.
Aquilo era para ele tão somente um ato administrativo. Nem a juíza
Márcia Faria, nem Naji Nahas, nem o prefeito de São José dos Campos
Eduardo Cury ou o governador de São Paulo Geraldo Alckmin se dispuseram a
visitar a ocupação, já que seus moradores não são ninguém, não são nada
além de um estorvo, um obstáculo ao império da ordem e da indústria
imobiliária. Milhares de almas jogadas na rua, sem qualquer remorso ou
compaixão, em favor de alguem que, diferente dos moradores do
Pinheirinho, não precisa trabalhar para viver, sustenta-se através da
falcatrua, da corrupção, das amizades influentes. Os moradores ficaram
sem lar, mas os que os despejaram, voltaram para o conforto de suas
casas.
Quem vai se lembrar daquela gente
quando, no terreno onde antes havia o Pinheirinho, for construído um
mega shopping center? Quem sabe o novo empreeendimento seja batizado
como “Pinheirinho Mall” ou talvez a palavra Pinheirinho nem seja mais
usada pela administração municipal, na tentativa de apagar de vez a
memória do que antes foi uma ocupação. Mas como diz o ditado popular,
“quem bate esquece, quem apanha lembra”.
Carlos Latuff é cartunista
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