‘É ingenuidade pensar que tudo acabou’, diz Frei Betto sobre espiões da ditadura
Um dos principais nomes da Igreja Católica na luta contra o regime militar e ex-assessor da Presidência diz que tem certeza que o MST está entre os alvos dos militares hoje
Ricardo Galhardo - iG São Paulo |
“É muita ingenuidade nossa pensar que tudo acabou”. A frase é do
escritor Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, um dos principais
nomes da Igreja Católica brasileira na resistência à ditadura militar
(1964-1985). Preso entre 1969 e 1974, acusado de integrar a Ação Popular
ao lado do guerrilheiro Carlos Marighella, Frei Betto está convencido
de que os militares ainda agem nos bastidores do Planalto espionando as
mais altas autoridades do país, inclusive a Presidência da República.
Anivaldo Padilha: Pai de ministro narra como abdicou do filho durante a ditadura militar
Em entrevista ao iG, Frei Betto, que foi assessor
especial da Presidência no primeiro governo Lula, disse ter alertado o
então chefe de gabinete Gilberto Carvalho sobre a possibilidade de
escutas telefônicas no Palácio do Planalto. “Estou convencido de que
isso existe até hoje. Não que eles (militares) estejam me seguindo ou
espionando. Mas tenho certeza que o MST e até a Presidência da
República, sim”, afirmou.
Frei Betto – A minha pergunta é por que o d. Eugênio (morto no último dia 9, aos 91 anos) fez isso para estrangeiros e não fez para brasileiros? Essa é a minha pergunta.
Entenda: O que é Comissão da Verdade?
iG – Existia uma rede de solidariedade na Igreja, uma rota de fuga com conexões no exterior?
FB – Meu trabalho principal foi organizar essa rota
de fuga. Mandei umas 10 pessoas. Em geral, sequestradores do embaixador
americano (Charles Elbrick). Ninguém acredita, a repressão muito menos,
mas a verdade é que eu nunca fui na fronteira. No entanto, eu dominava o
esquema da fronteira porque o (Carlos) Marighella tinha me passado como
funcionava. Só tinha que receber as pessoas em Porto Alegre e dar a
dica. Tinha duas passagens. Uma em Santana do Livramento com Rivera, no
Uruguai, e outra em Passo de Los Libres, na Argentina. Então eu tinha
que dar as coordenadas e passar um telegrama em código para a pessoa que
ia ficar lá esperando e já sabia que alguém ia chegar lá com uma
revista na mão, aquelas coisas. E passava. Alguns voltaram. Outros foram
presos no Uruguai, Mas havia muita solidariedade em igrejas, conventos
etc.
iG – Protestantes e outros grupos religiosos participavam dessa rede de solidariedade?
FB – Muito. O pastor Jamie Wright, por exemplo. O
irmão dele foi assassinado, Paulo Wright, líder da AP (Ação Popular).
Geralmente em Igrejas históricas como a Batista, Luterana,
Presbiteriana, Metodista, judeus. Naquela época quase não existiam as
neopentecostais. E todos eles divididos a exemplo da Igreja Católica.
iG – Como era lidar com os infiltrados?
FB – Era muito difícil. Quando estávamos presos no
Dops, em 1969, havia lá o delegado Alcides Cintra Bueno que era chamado
“delegado do culto” por ser especializado em religiões. Era um homem de
formação católica meio carola, mas torturador. Como ele conhecia muito a
mecânica das Igrejas era o que mais interrogava religiosos. Nós vimos
frades de hábito que eram agentes dele e iam lá dar informação sobre
subversão na Igreja. Além do Lenildo Tabosa que era do Jornal da Tarde,
assistiu ao interrogatório do Frei Fernando e a vida inteira carregou
esta cruz fazendo de tudo para negar. Mas nunca conseguiu convencer,
Fernando viu.
iG – Até descobrirem a existência de infiltrados muitas pessoas caíram?
FB – Sim. Era muito difícil descobrir infiltrados.
Muitos a gente detectou, mas tem gente que colaborou com a ditadura e
vai morrer incólume. A não ser que tenha dado uma mancada. Tem um
seminarista dominicano que a gente não sabe se ele já era colaborador
quando entrou. Depois, na USP, descobriram que ele era agente da
repressão. Ele sumiu do mapa durante uns cinco anos e então recebemos
informação de que ele tinha sido levado para um treinamento na escola da
CIA no Panamá. Quando eu saí da prisão ele reapareceu todo amiguinho
dizendo que estava com saudade e falei para ele, cara a cara, “não sei
se você é ou não é, mas não tenho a menor confiança em você e por favor
não me apareça mais”.
iG – Essa paranoia durou até depois do fim da ditadura, não?
FB – Quando saí da prisão fui morar numa favela em
Vitória e fiquei lá de 1974 a 1979. Já em 1977 comecei a voltar a São
Paulo para trabalhar com educação popular. Quando Fernando Henrique,
Almino Afonso e Plínio de Arruda Sampaio voltaram para o Brasil eles
vieram com a ideia de fundar um partido socialista. Eu, naquele momento,
estava no auge da mobilização pelas CEBs (Comunidades Eclesiais de
Base) e eles me convocaram para uma reunião na casa de um jornalista,
cujo nome não vou citar pois estou subjetivamente convencido que esta
pessoa era da repressão mas não tenho prova. Sei que me estranhou o fato
de ele ser um repórter e ter um padrão de vida tão alto. E tome vinho,
tome vinho, conversamos, eles tentavam me convencer que tinham a forma,
um partido socialista, e eu entrava com a massa, as CEBs. Eu respondi
que ia surgir um partido de baixo para cima, isso em 1978, por intuição,
e depois surgiu o PT em 1980. Marcamos outra conversa, o jornalista
insistiu para que fosse novamente na casa dele e isso acabou num
impasse. Até que um frade daqui, depois de muitos anos, me perguntou se
eu havia participado de uma reunião na casa de fulano, com Fernando
Henrique (Cardoso, ex-presidente) e Plínio (de Arruda Sampaio) etc.
Perguntei como ele sabia daquilo e o frade respondeu que um general
amigo dele ligado ao SNI foi quem contou. Aí caiu a ficha. Tinha muito
esse tipo de coisa. Recentemente peguei no arquivo público nacional todo
meu dossiê. Ele vai até 1992. E tem coisas absolutamente inverossímeis.
iG – O senhor ainda toma algum cuidado especial?
FB - Estou convencido de que isso existe até hoje.
Não que eles (militares) estejam me seguindo ou espionando. Mas tenho
certeza que o MST e até a Presidência da República, sim. Seria muita
ingenuidade nossa achar que o Planalto não é espionado. É o centro, o
coração do poder. Quando trabalhei no Planalto (no primeiro governo
Lula) duas coisas me chamaram atenção. Primeiro que todos os garçons
eram das Forças Armadas. E o garçom é a pessoa que entra no meio da
reunião, que enquanto está servindo o cafezinho fica escutando tudo,
fica amigo das secretárias, tem trânsito livre até na sala do
presidente. Não entra o ministro, mas entra o garçom. E outra coisa foi
num dia em que o Lula estava viajando, subi na sala do Gilberto Carvalho
(então chefe de gabinete da Presidência) e vi um pessoal na sala do
Lula cheio de equipamentos. Perguntei o que era aquilo e o Gilberto
disse que era o pessoal da varredura do Exército. Eu perguntei para o
Gilberto qual a garantia de que eles não tiram um equipamento de
gravação e colocam outro. Gilberto disse que nunca tinha pensado nisso.
iG – Mas seriam os militares?
FB – Sim. Os militares.
iG – Com qual objetivo?
FB – O objetivo é simples. Informação é poder.
iG – O que se sabe é que existe uma grande rede de espionagem em Brasília mas por razões econômicas, chantagem etc.
FB – Os militares neste ponto são mais… é como nos
EUA. A CIA não prende ninguém. Ela só trabalha com informação. Quem
prende é o FBI. É muita ingenuidade nossa pensar que tudo acabou.
iG – Os militares teriam um projeto de retomar o poder?
FB – Não. Eles têm o projeto de não serem surpreendidos e eventualmente até de manipular.
iG – Eles são movidos pelo medo?
FB – Não. É uma questão de inteligência militar mesmo.
Colaborou Gisele Silva, iG São Paulo
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