sábado, 20 de outubro de 2012

O povo brasileiro quer justiça (ou Carminha, Nina e a justiça na telinha)

 
Novela é um gênero literário. Nem tão extenso como um romance e nem tão curto quanto um conto. Porém pode ser mais densa e complexa que qualquer um dos dois outros gêneros. Há novelas de conteúdo com qualidade artística inestimável como Noites Brancas (Dostoiévski), O Alienista (Machado de Assis), A Metamorfose (Kafka) e talvez a primeira novela escrita, Decameron (Boccaccio). Quase sempre as novelas estão entre as obras mais vendidas dentre as obras dos autores, talvez por uma empatia com o público popular causada pela trama envolvente e em ritmo acelerado que aguça o pensamento em perspectiva das pessoas.
 
Com o advento do rádio, esse gênero se reciclou e assumiu a forma da radionovela (não que as novelas escritas tenham desaparecido, ainda existem muitas). Com a narração e entonação de voz diferente das personagens, além do fato da organização em capítulos diários (com a estratégia de deixar sempre suspense de um dia para o outro) esse gênero rapidamente atingiu as massas populares e consagrou autores como Oduvaldo Vianna (pai do Vianinha) e Gilberto Martins; além de atores e atrizes como Silvia Cardoso, Maria Ieda, Luiz Carlos e Magalhães e José Lucas (um xará bem mais famoso em seu tempo). Isso foi nas décadas de 30, 40 e 50 do século passado.
 
Nas décadas de 70 e 80 do século passado se consolidou no Brasil, servindo inclusive como artigo de exportação, uma nova flexão deste mesmo gênero: a telenovela. Com a popularização dos aparelhos televisivos, a natural migração, que já havia ocorrido quando da popularização dos rádios, aconteceu de forma rápida e rapidamente transformou-se em fenômeno nacional. Títulos como Pecado Capital e Selva de Pedra (Janete Clair), Roque Santeiro, O Bem Amado e Irmãos Coragem (Dias Gomes) e as mais recentes Vale Tudo, Anos Rebeldes e Insensato Coração (Gilberto Braga), foram sucessos nacionais atingindo níveis altíssimos de audiência e tendo seus capítulos finais discutidos na boca do povo.
 
Portanto, podemos concluir que a novela sempre foi um gênero popular, que contava fantasticamente ou realisticamente a vida da população e, muitas vezes com um nível de complexidade psicológica e qualidade artística acima da média. A qualidade artística e a complexidade psicológica são questionáveis, mas a popularidade da novela Avenida Brasil (João Emanuel Carneiro) é pública e notória. E por isso, hoje, no último capítulo dessa novela, os índices de audiência também foram enormes. E neste mesmo instante, nas redes sociais, uma parcela da juventude universitária, sobretudo, comenta pejorativamente o fato de milhões assistirem a novela e julgam todos como alienados, idiotas e estúpidos. Parece mais fácil do que tentar entender profundamente.
 
O tema central da novela é o fato de que a personagem da excelente atriz Adriana Esteves (Carminha) realizar e planejar diversas maldades e trambiques e ter em sua antagonista a boa atriz Débora Falabella (Nina) uma mocinha não menos maliciosa e cruel. Do meio para o fim da trama, a vilã vai se enredando cada vez mais no emaranhado de fatos que não se concatenam e é exatamente a expectativa de vê-la ser derrotada e pega com a “boca na butija” que fez com que a novela fosse crescendo em público até o final. 
Portanto, num país onde poderosos e grandes especuladores vivem impunemente do espólio de suas falcatruas, o sentimento de justiça da população passa a ser espelhado num final onde Carminha será condenada por assassinato e suas mentiras e traições acabam sendo condenadas juntamente. Junte-se a isso futebol, enredos amorosos e um povo trabalhador e feliz de um bairro do subúrbio e temos um imenso sucesso televisivo.
 
Até aí tudo bem. O problema é que, sendo um veículo de transmissão dos pensamentos da classe dominante de nosso país, a televisão através da telenovela passa exatamente essas mesmas ideias. Num momento onde a grande imprensa tenta criar um sentimento de euforia popular com o julgamento do mensalão e a condenação de corruptos e corruptores que culpados dos crimes que são acusados, não o são mais do que os mesmos corruptos que privatizaram o país na década de 90 do século passado e não são sequer investigados ou apontados como vilões pelos jornais nacionais, veículos que são dessa mesma classe dominante. Neste mesmo momento histórico, vem a fala da mãe do Tufão no capítulo final, ao saber da prisão da Carminha: “ainda dizem que não existe justiça nesse país!”. Será por acaso?
 
Outra ideia difícil de engolir, é o argumento implícito nos tapas que Carminha leva ao ser descoberta como vilã. Apanha do marido e de outras pessoas num clima de “justiça” satisfeita, ou seja, quando a mulher é culpada não tem problema apanhar. Esse argumento levado ao absurdo, pode ser aplicado a mulher que serve a comida fria, que não satisfaz o parceiro na cama, que não ‘cuida bem’ dos filhos e por aí vai.
 
Além do mais, os pobres da novela tem um poder aquisitivo muito maior do que a média da população pobre do Brasil, claramente com objetivo de alterar no inconsciente coletivo, a realidade econômica do povo. Porém, é óbvio que a cada vez que a crise econômica se aprofunda e o poder de compra dos trabalhadores diminui, fica mais desmascarada essa tática, e as pessoas já comentam na rua esse fato com desdém.
 
Não adianta nada se achar intelectualizado o suficiente para desprezar a grande massa que vê seus anseios respondidos por uma estória na telinha. Quem despreza o sentimento da maioria e se julga superior pelo simples fato de não assistir uma novela, só pode estar extremamente alienado da realidade pela qual passa a sociedade brasileira. Se o conjunto da sociedade faz uma determinada coisa é porque o sentimento geral, os anseios gerais estão de certa forma representados nessa determinada coisa. É óbvio que quem detém os meios de comunicação coloca suas ideias e preconceitos no meio desses anseios, no intuito de massifica-los, quase sempre com sucesso.
 
É necessário entender esses anseios e trabalhar por todos os meios, principalmente artisticamente, para desmistificar e desmascarar os argumentos mentirosos dessas estórias e chegar conjuntamente com o povo brasileiro a conclusão de que não existe justiça no Brasil exatamente porque essa classe dominante toma conta dos meios de comunicação, dos tribunais de justiça, dos meios de produção e de tudo o mais. Que só haverá justiça quando nós, o povo brasileiro, deixemos de ser (tele)espectadores e passemos a ser atores e atrizes da vida do país.

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