Novela
é um gênero literário. Nem tão extenso como um romance e nem tão curto
quanto um conto. Porém pode ser mais densa e complexa que qualquer um
dos dois outros gêneros. Há novelas de conteúdo com qualidade artística
inestimável como Noites Brancas (Dostoiévski), O Alienista (Machado de
Assis), A Metamorfose (Kafka) e talvez a primeira novela escrita,
Decameron (Boccaccio). Quase sempre as novelas estão entre as obras mais
vendidas dentre as obras dos autores, talvez por uma empatia com o
público popular causada pela trama envolvente e em ritmo acelerado que
aguça o pensamento em perspectiva das pessoas.
Com o advento do rádio, esse gênero se reciclou e assumiu a forma da
radionovela (não que as novelas escritas tenham desaparecido, ainda
existem muitas). Com a narração e entonação de voz diferente das
personagens, além do fato da organização em capítulos diários (com a
estratégia de deixar sempre suspense de um dia para o outro) esse gênero
rapidamente atingiu as massas populares e consagrou autores como
Oduvaldo Vianna (pai do Vianinha) e Gilberto Martins; além de atores e
atrizes como Silvia Cardoso, Maria Ieda, Luiz Carlos e Magalhães e José
Lucas (um xará bem mais famoso em seu tempo). Isso foi nas décadas de
30, 40 e 50 do século passado.
Nas décadas de 70 e 80 do século passado se consolidou no Brasil,
servindo inclusive como artigo de exportação, uma nova flexão deste
mesmo gênero: a telenovela. Com a popularização dos aparelhos
televisivos, a natural migração, que já havia ocorrido quando da
popularização dos rádios, aconteceu de forma rápida e rapidamente
transformou-se em fenômeno nacional. Títulos como Pecado Capital e Selva
de Pedra (Janete Clair), Roque Santeiro, O Bem Amado e Irmãos Coragem
(Dias Gomes) e as mais recentes Vale Tudo, Anos Rebeldes e Insensato
Coração (Gilberto Braga), foram sucessos nacionais atingindo níveis
altíssimos de audiência e tendo seus capítulos finais discutidos na boca
do povo.
Portanto, podemos concluir que a novela sempre foi um gênero popular,
que contava fantasticamente ou realisticamente a vida da população e,
muitas vezes com um nível de complexidade psicológica e qualidade
artística acima da média. A qualidade artística e a complexidade
psicológica são questionáveis, mas a popularidade da novela Avenida
Brasil (João Emanuel Carneiro) é pública e notória. E por isso, hoje, no
último capítulo dessa novela, os índices de audiência também foram
enormes. E neste mesmo instante, nas redes sociais, uma parcela da
juventude universitária, sobretudo, comenta pejorativamente o fato de
milhões assistirem a novela e julgam todos como alienados, idiotas e
estúpidos. Parece mais fácil do que tentar entender profundamente.
O tema central da novela é o fato de que a personagem da excelente atriz
Adriana Esteves (Carminha) realizar e planejar diversas maldades e
trambiques e ter em sua antagonista a boa atriz Débora Falabella (Nina)
uma mocinha não menos maliciosa e cruel. Do meio para o fim da trama, a
vilã vai se enredando cada vez mais no emaranhado de fatos que não se
concatenam e é exatamente a expectativa de vê-la ser derrotada e pega
com a “boca na butija” que fez com que a novela fosse crescendo em
público até o final.
Portanto, num país onde poderosos e grandes
especuladores vivem impunemente do espólio de suas falcatruas, o
sentimento de justiça da população passa a ser espelhado num final onde
Carminha será condenada por assassinato e suas mentiras e traições
acabam sendo condenadas juntamente. Junte-se a isso futebol, enredos
amorosos e um povo trabalhador e feliz de um bairro do subúrbio e temos
um imenso sucesso televisivo.
Até aí tudo bem. O problema é que, sendo um veículo de transmissão dos
pensamentos da classe dominante de nosso país, a televisão através da
telenovela passa exatamente essas mesmas ideias. Num momento onde a
grande imprensa tenta criar um sentimento de euforia popular com o
julgamento do mensalão e a condenação de corruptos e corruptores que
culpados dos crimes que são acusados, não o são mais do que os mesmos
corruptos que privatizaram o país na década de 90 do século passado e
não são sequer investigados ou apontados como vilões pelos jornais
nacionais, veículos que são dessa mesma classe dominante. Neste mesmo
momento histórico, vem a fala da mãe do Tufão no capítulo final, ao
saber da prisão da Carminha: “ainda dizem que não existe justiça nesse
país!”. Será por acaso?
Outra ideia difícil de engolir, é o argumento implícito nos tapas que
Carminha leva ao ser descoberta como vilã. Apanha do marido e de outras
pessoas num clima de “justiça” satisfeita, ou seja, quando a mulher é
culpada não tem problema apanhar. Esse argumento levado ao absurdo, pode
ser aplicado a mulher que serve a comida fria, que não satisfaz o
parceiro na cama, que não ‘cuida bem’ dos filhos e por aí vai.
Além do mais, os pobres da novela tem um poder aquisitivo muito maior do
que a média da população pobre do Brasil, claramente com objetivo de
alterar no inconsciente coletivo, a realidade econômica do povo. Porém, é
óbvio que a cada vez que a crise econômica se aprofunda e o poder de
compra dos trabalhadores diminui, fica mais desmascarada essa tática, e
as pessoas já comentam na rua esse fato com desdém.
Não adianta nada se achar intelectualizado o suficiente para desprezar a
grande massa que vê seus anseios respondidos por uma estória na
telinha. Quem despreza o sentimento da maioria e se julga superior pelo
simples fato de não assistir uma novela, só pode estar extremamente
alienado da realidade pela qual passa a sociedade brasileira. Se o
conjunto da sociedade faz uma determinada coisa é porque o sentimento
geral, os anseios gerais estão de certa forma representados nessa
determinada coisa. É óbvio que quem detém os meios de comunicação coloca
suas ideias e preconceitos no meio desses anseios, no intuito de
massifica-los, quase sempre com sucesso.
É necessário entender esses anseios e trabalhar por todos os meios,
principalmente artisticamente, para desmistificar e desmascarar os
argumentos mentirosos dessas estórias e chegar conjuntamente com o povo
brasileiro a conclusão de que não existe justiça no Brasil exatamente
porque essa classe dominante toma conta dos meios de comunicação, dos
tribunais de justiça, dos meios de produção e de tudo o mais. Que só
haverá justiça quando nós, o povo brasileiro, deixemos de ser
(tele)espectadores e passemos a ser atores e atrizes da vida do país.
Nenhum comentário:
Postar um comentário