quinta-feira, 22 de julho de 2010

O percurso e as escolhas de Eliza Samudio - Mulher e cidadã

Por: MARA GREIDE

Socióloga; diretora de pesquisa do Instituto Kapta.


As discussões sobre o caso Bruno procuram entender se o jogador agiu de forma tão violenta devido a uma psicopatia de ordem natural ou em função do meio social e cultural onde cresceu. Relatos também tentam discutir o papel das instituições de esporte na formação do caráter de meninos que vivenciam uma mobilidade social rápida e sem preparo.

Esse trágico episódio não me faz pensar na trajetória do Bruno, mas atiça minha curiosidade sobre o percurso e as escolhas de Eliza Samudio. Com certeza, os fatores socioculturais explicam de maneira mais substantiva o destino e o trágico fim dessa moça. Suas escolhas, valores, comportamento e papel social podem ser compreendidos por elementos da cultura brasileira. E Eliza novamente expõe que, no Brasil, mesmo as mulheres contemporâneas posicionadas no mercado de trabalho e escolarizadas ainda convivem com a noção de mulher da casa e mulher da rua.

Eliza é emblemática para compreendermos as relações de gênero na sociedade contemporânea, principalmente no Brasil. E pensar nas questões de gênero não significa apenas falar de diferenças sexuais, mas em questões que são determinadas por outras variáveis dependentes dos contextos culturais nas quais elas se inserem. Gênero, portanto, é um processo de classificação, de definição de papéis e comportamentos. É a categoria analítica que pode nos auxiliar na compreensão das escolhas de Eliza e na maneira como a população está interpretando seu destino.

Bruno é produto de uma sociedade com resquícios patriarcais e, por isso, tão naturalmente tentou desqualificar Eliza, dizendo que a conheceu numa orgia. Bem, numa sociedade com estrutura patriarcal como a nossa, tolera-se que o homem casado, mesmo de vida pública, possa participar de uma orgia, que é vista como um deslize normal; mas a mulher que compartilha dessa prática é tida como objeto amoral, assumindo uma dimensão quase inumana. E se essa mulher engravida demonstra ainda mais o quanto é mal intencionada e digna de desrespeito. Nas conversas de rua, ouvi pessoas afirmando que ela queria dar o "golpe da barriga", mas não escutei críticas à ação do homem casado e bem de vida que numa orgia transou sem proteção.

No Brasil, desde os anos 30, as mulheres começaram gradativamente a se inserir nas instituições de ensino e, depois, no mercado de trabalho. Mas ainda convivemos com a realidade cultural que separa a mulher da casa da mulher da rua. A primeira já é percebida como uma cidadã, detentora de direitos e deveres; já a segunda ocupa uma hierarquia que a coloca em situações de extrema desvantagem. E, para marcar o triste fim de Eliza, ela será interpretada assim, como a amante, a mulher da rua.

Esse é o momento para desqualificarmos esses construtos culturais e percebermos as mulheres como cidadãs, detentoras de direitos e deveres e dignas de justiça, mesmo que as oportunidades da vida as tenham colocado na rua. Portanto, Eliza é mulher e cidadã.


Publicado em: Jornal O Tempo, Belo Horizonte, em 16/07/2010.

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