A possibilidade de que corpos de
ex-guerrilheiros ainda possam ser encontrados é considerada quase nula
numa casa situada na avenida Almirante Barroso, em Belém. Em uma pequena
vila, o aposentado I.V., de 92 anos, se deixa levar por lembranças que
julgava enterradas, sepultadas em uma memória que tentou apagar imagens
de uma manhã perdida nos anos 70. O aposentado foi testemunha de uma das
possíveis atrocidades cometidas por Sebastião Curió no combate à
guerrilha do Araguaia. I.V. lembra ter visto seis pessoas sendo jogadas
de um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) nas matas do Araguaia.
Seriam lembranças que não viriam à tona não fosse a série de reportagens
do Diário do Pará a respeito da trajetória de Sebastião Curió. Ao ler
as reportagens, I.V. decidiu contar o que viu. “Ele passou a semana
agitado”, diz a filha do aposentado. “Dizia que precisava falar a
respeito do tal major Curió”.
Na década de 70, I.V. trabalhava como
copiloto de um avião Catalina que transportava carne de gado do
município de Conceição do Araguaia a Belém. Num desses transportes,
testemunhou, sem saber exatamente o que ocorria, a maneira como os
inimigos de Curió eram tratados. “Nós decolamos de Conceição do Araguaia
às 6h. Recebemos, logo depois da subida, uma mensagem da torre de
controle de Marabá informando que não deveríamos voar usando os
instrumentos. Tínhamos de usar o sistema manual e na orientação visual”.
A justificativa era que um avião da FAB
fazia operações na área. O comandante Macedo, que pilotava o avião,
começou a voar abaixo das nuvens para facilitar a visualização. Quando
sobrevoavam as matas do Araguaia, viram o avião da FAB. “Começamos a ver
uma coisa estranha. Estavam jogando coisas do avião”. A cena era
macabra. “Primeiro foi um, depois mais dois, em seguida mais dois e no
final mais um”, enumera o aposentado. O comandante Macedo ainda embicou a
aeronave para que os dois pudessem observar melhor o que se passava.
Aos poucos, ficou claro que eram pessoas que estavam sendo arremessadas
do interior do avião. Seis pessoas no total.
Em Marabá, enquanto faziam a manutenção
da aeronave, piloto e copiloto foram abordados por um sargento, chefe do
Destacamento de Marabá que, passando por problemas de saúde, pedia
carona a Belém. “Damos a carona se o senhor nos explicar o que foi que
vimos”, condicionou o comandante Macedo. O sargento concordou em contar
os fatos, desde que nada do que fosse conversado fosse revelado,
dissecando, a seguir, o plano executado por Curió.
Às 5h, ele ordenou que seis mulheres
integrantes da guerrilha fossem acordadas porque participariam de um
passeio. “A cozinha não está funcionando ainda”, lhe respondeu o
soldado. “Não tem problema, assim elas não enjoam”, retrucou Curió. As
seis guerrilheiras teriam sido atiradas vivas do avião. Uma imagem que
ficou compartilhada em segredo por I.V. e o comandante Macedo. Anos
depois, Macedo morreria num acidente de avião. I.V. esqueceria aos
poucos aquela manhã dos anos 70. “Quando li o primeiro artigo que fala
da negativa do juiz de Marabá, pensei que só o Supremo Tribunal Federal
pode resolver essa questão, mas sei que não vai ser possível encontrar
nada dessas moças. Nunca mais”, diz o aposentado.
I.V. não quer ser identificado. Recusa que se façam fotos. Viu algo que sempre foi uma suspeita dos que buscam resgatar a história do fim da guerrilha. “É um novo olhar sobre esse episódio”, diz Paulo Fonteles Filho, que integra a comissão que busca encontrar as ossadas dos guerrilheiros mortos na região. “Quando li as reportagens, tudo veio de novo, todas as imagens”, diz o aposentado. “Eu precisava falar”. É o exemplo a ser seguido. (Ismael Machado/Diário do Pará)
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