25/3/2012 13:51,
Por Gilson Caroni Filho - do Rio de Janeiro
Com o desaparecimento de Chico Anysio, vale lembrar o dito
rikiano de que “a fama é a soma de todos os equívocos em torno de
alguém”? Ou estamos assistindo a grandes e justificadas homenagens ao
mais importante humorista das últimas quatro décadas? Ciente da força
corrosiva do humor e da sátira, Chico criava personagens
obstinadamente, talvez intuitivamente, sabendo que o jogo da linguagem
crítica é, em si, o jogo do espírito em seu aspecto lúdico.
A irreverência no trato com autoridades e seu refinado senso de
resistência política o levaram a um intenso processo de criação, como se
não quisesse perder um só detalhe do que estivesse à sua volta.
Operando com similaridades e antíteses, captou, com sua lente fina, as
luzes e o dia-a-dia do povo brasileiro, dos oligarcas aos estratos
populares que não se curvam ao desencanto e à decepção. Do rádio à
televisão, Chico Anysio foi um perito em extrair de múltiplos detalhes
da nossa formação cultural significados precisos, dissolvendo mitos e
máscaras com o ácido sulfúrico da piada certeira e do sarcasmo.
Como ninguém, ele soube fazer isso com ternura, estranha ternura onde
o lado amargo da vida é plenamente resgatado pelo humor atordoante. Há
quem diga que, como os poetas, os humoristas habitam um mundo em
decomposição e decadência, mas o fazem de forma visceral, com arte feita
do mais puro aço da reflexão e da lucidez crítica.
Dotado de profunda consciência social, o cearense de Maranguape tem
uma face pouco conhecida, que vai bem além do talentoso humorista, autor
e compositor: a de um resistente que não se curvou às tentativas de
cooptação dos setores golpistas aglutinados, nos anos 1960, na rede de
propaganda geral e doutrinação do Instituto de Pesquisa e Estudos
Sociais (IPES).
Conforme nos revela René Armand Dreifuss (1981: 248), “a elite
orgânica se aproximou de inúmeros produtores, atores e diretores famosos
de televisão, tais como Gilson Arruda e Batista do Amaral. Favorecia o
uso de programas cômicos, quando possível. Rui Gomes de Almeida
observava que uma piada contra um político provocaria um “dano enorme”.
Negava, ao contrário, o apoio aos atores que não cooperassem ou agissem
contra os programas, as linhas de raciocínio e as pessoas que o IPES
patrocinava. Tal foi o caso do humorista Chico Anysio, sagaz observador
da realidade social”. [1]
Na melhor tradição do humor de combate, ainda que sem engajamento
explícito, Chico não renegou princípios. Entendeu corretamente e cumpriu
com competência a melhor missão do humor: a de fiscal mordaz e crítico
visceral das estruturas do poder. Na galeria de mais de duzentos
personagens, há lugar de destaque para a velha oligarquia e
parlamentares com um profundo sentimento antipopular. Tudo operado com
destreza e rara sensibilidade.
Na ausência de herdeiros, o panorama, após sua morte, é desolador.
Quadros do Instituto Millennium elegem o ódio de classe, a homofobia e a
descriminação de gênero como mote para piadas grosseiras. Programas
como Casseta & Planeta e CQC parecem restabelecer uma velha sina: no
Brasil, homens que tiveram voos de águia ou condor acabam em incursões
galináceas, saltando direto para o poleiro. Enquanto outros, ainda
jovens, antecipam a hora do perjuro.
Vai-se a multiplicidade que transforma. Fica a vala comum do
transformismo. Não esperem perspicácia, iconoclastia irônica e
imaginativa. O que toma a cena como “humor político” nada mais é do que o
fascismo que lhe sorri.
Nota [1] DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Ação
Política, Poder e Golpe de Classe, Vozes, Petrópolis, Rio de Janeiro,
1981.
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Correio do Brasil e do Jornal do Brasil.
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