segunda-feira, 26 de março de 2012

O massacre de Port Said: Muito mais do que futebol

Novos protestos aconteceram hoje na cidade egípcia após o clube Al-Masry ter sido banido por dois anos das competições; confrontos deixaram uma criança morta e 19 feridos


Brasil de Fato - 24/03/2012
Raphael Tsavkko Garcia

Tudo começa no dia 1 de fevereiro, quando pelo menos 74 morreram e mil ficaram feridos. Talvez até mais. Este foi o resultado do “confronto“ entre as torcidas do Al-Ahly e do Al-Masry, na cidade egípcia de Port Said, uma das mais importantes do país. Por confronto, neste caso, é preciso imaginar um massacre onde uma torcida perseguia a outra, em pânico.

Mas a confusão não se tratava do resultado apenas da rivalidade entre as duas equipes, ao contrário do que foi veiculado pelo governo egípcio, interessado em abafar ao máximo o caso. Ao mesmo tempo em que há dúvidas sobre se se tratava efetivamente de torcedores do Al-Masry ou de agentes infiltrados e marginais contratados.

No dia 25 de janeiro, a Revolução Egípcia havia completado um ano, e a mobilização nas ruas do Egito e em especial na Praça Tahrir, no Cairo, continuavam fervilhando. Os manifestantes conseguiram derrubar o ditador Hosni Mubarak, mas acabaram sendo forçados a engolir uma junta militar que reprime a população com a mesma ferocidade do regime anterior. Para complicar a situação, a economia egípcia entrou em colapso com os contínuos protestos e com o clima de terror, além da violência ter sofrido uma imensa escalada.

Segundo o ativista brasileiro Aldo Sauda, que há meses está no Cairo acompanhando o processo revolucionário e participando ativamente da linha de frente dos protestos na Praça Tahrir, epicentro da Revolução, trata-se de um caso claro de manipulação da temida SCAF, o Conselho Supremo das Forças Armadas do Egito, que tomou o poder após a deposição de Mubarak, formando um conselho militar que mantém insatisfeito o grosso dos manifestantes.

A SCAF é o resultado da pressão dos militares que por anos sustentaram o regime de Mubarak e que hoje buscam manter seu poder sobre o país.

Eleições foram realizadas no Egito, mas boicotadas por grande quantidade dos milhões de manifestantes egípcios, na sua maioria jovens, que não concordaram com o processo organizado por militares, e que viu a formação de uma maioria islâmica composta pelos moderados da Irmandade Muçulmana e por Salafistas.
Durante os protestos na praça Tahrir os chamados Ultras ou UA07 - torcedores fanáticos, neste caso do Al-Ahly - comparecetam em peso e eram responsáveis pelas músicas mais ofensivas ao regime, como explica Sauda. O futebol ficou em segundo lugar ao passo que torcedores Ultras do Zamalek – os Cavaleiros Brancos -, principal rival do Ahly, se juntaram aos protestos, pacificamente cantando junto aos torcedores do time rival.

A união contra o regime foi tanta que ambas torcidas Ultras se fundiram e passaram a se chamar "Ultras Freedom", ou Ultras Liberdade. Ao contrário do senso comum, os Ultras de ambas as torcidas, e em especial do Al-Ahly são relativamente pacíficos e extremamente politizados. Apesar de alguns “soluços”, como chama o jornalista Mohamed El Dahshan os conflitos esporádicos e típicos em estádios egípcios, nunca um episódio de tamanha violência havia ocorrido. Algo está errado, diz o jornalista.

Torcidas organizadas

Não fosse a presença aguerrida e radical de diversos membros Ultra no Cairo, é possível que a Revolução não tivesse se sustentado por tanto tempo e a população tivesse resistido de forma tão tenaz. As torcidas organizadas radicais no Egito não são antigas, mas nasceram em grande parte do descontentamento com o regime e como válvula de escape frente à insatisfação da juventude.

Cantos como "Abaixo o Regime Militar" ou "O povo quer que o Marechal seja executado", em referência ao Marechal Tantawi que comanda o regime militar, eram lugar comum entre os diversos gritos e palavras de ordem da torcida do Al-Ahly em Tahrir e no estádio de Port Said. Pichações Pichações com a insígnia ACAB (All Cops Are Bastards – todos os policiais são bastardos) são vistos lado a lado com slogans revolucionários em cada espaço vazio na cidade do Cairo.

A jornalista Dima Khatib comentou, em seu blog e nas redes sociais, que torcedores Ultras do Al-ahly contavam músicas ofensivas contra o regime militar dentro e fora do estádio e as imagens do momento do massacre denunciam a falta de ação da polícia, que não se moveu para defender os torcedores e jogadores do Al-Ahly.

Massacre arquitetado

A tese da conspiração e de um massacre arquitetado pelo regime se sustenta também pela notada ausência do governador de Port Said e de seu chefe de segurança a um jogo em que normalmente compareceriam, denunciou o parlamentar Mohamed Abou Hamed à televisão egípcia. Que existe rivalidade entre as torcidas Ultra do Al-Ahly e do Al-Masry não é novidade, há alguns anos a torcida do segundo roubou alguns troféus da sede do primeiro. Mas, em geral, a violência tem sido localizada e contida.

Ativistas egípcios não descartam que torcedores do Al-Masry tenham sido pagos para agir ou mesmo que provocadores do exército tenham incitado a torcida a partir para cima dos Ultras do Al-Ahly, mas em meio a uma situação convulsionante toda opinião é tão válida quanto a outra.

Torcedores do lado de fora do estádio acusaram a polícia de ter fechado diversos portões, dificultando a fuga da torcida que, apesar da maior do país, era minoria em Port Said. Segundo o jornalista Mohamed Elmeshad, os procedimentos de segurança padrão para jogos do campeonato egípcio não foram seguidos e em dado momento os policiais que deveriam permanecer no estádio simplesmente sumiram, e ao passo que os portões ao lado da torcida do Al Ahly permanecerem fechados, impedindo a fuga dos torcedores, portões foram abertos do outro lado do estádio por agentes de segurança para permitir a entrada de provocadores.

Parte da população de Port Said colaborou no salvamento das vítimas do massacre, usando mesmo seus carros pessoais para levar feridos a hospitais e doando sangue e acusando a SCAF de ter arquitetado o massacre. Sobreviventes denunciaram ter ouvido dos atacantes que estes batiam para lavar a honra da SCAF e para dar uma lição aos que se revoltam contra o regime. Para o ativista brasileiro Sauda, trata-se de uma “punição coletiva” inequívoca.

Em sua página oficial no Facebook, os Águias Verdes, torcida Ultra do Al Masry, declararam ser comprometidos com o apoio pacífico ao seu time e que fez o possível para prevenir a infiltração de provocadores em suas fileiras. A torcida denunciou, porém, terem sofrido a aproximação de provocadores antes do jogo com a intenção de promover a violência e mesmo sequestrar jogadores do Al Ahly. Os Ultras do Al MAsry denunciaram também que algumas pessoas chegaram a ameaçar vendedores e outros torcedores para conseguir ingressos para a partida.

A torcida do Al Masry declarou que “nosso grupo não tem nada a ver com o que aconteceu. Iremos suspender nossas atividades em respeito aos que morreram pelo Egito” e também prometeram participar dos protestos contra o regime ao lado das demais torcidas Ultra organizadas.

Dezenas de pessoas foram asfixiadas, pisoteadas ou mesmo espancadas até a morte, no campo e nas arquibancadas. Outros acabaram, apavorados, pulando das arquibancadas e morrendo em consequência. Os jogadores do Al-Ahly foram forçados a correr e se esconder nos vestiários, onde ao menos um torcedor morreu enquanto tentava desesperadamente escapar da violência.

O campeonato egípcio foi suspenso, algo que, segundo muitos egípcios, deveria ter sido feito há tempos, pois não há condições de segurança no país para evitar tragédias como as de Port Said que, a bem da verdade, pode ter sido minuciosamente planejada. O prefeito de Port Said renunciou e ao menos dois chefes de polícia foram presos, além da cúpula do futebol do país ter sido destituída, no que, para muitos, não passa de uma cortina de fumaça frente ao massacre arquitetado pelo governo que agora encobre seus rastros.


Casos semelhantes

Casos de violência no esporte são comuns. Torcidas adversárias se degladiam e se degladiaram em diversos países por razões políticas e existe clara tensão entre torcidas pelo mundo. O Real Madrid – em especial sua torcida de cunho fascista Ultra Sur - vive em constante tensão com torcedores do Herri Norte do Athletic de Bilbao e com torcedores do Barcelona, ambos times representando minorias étnicas e nacionalistas da Espanha.

Honduras e El Salvador já sustentaram batalhas violentas no futebol em 1969, prenúncio de uma guerra que vitimou ambos os países na chamada “Guerra do Futebol” que durou apenas quatro dias (14 a 18 de julho de 1969) e deixou quase 2 mil mortos.

Em 1990, as torcidas do Dínamo Zagreb e Estrela Vermelha de Belgrado acabaram em violento conflito, denunciando o conflito que teria início fora dos campos no ano seguinte, quando da separação da Croácia e Eslovênia da Iugoslávia.

Na Inglaterra, é comum a violência dos chamados Hooligans, ao passo que Celtic (católico) e Rangers (protestante), da Escócia, costumam se enfrentar por razões religiosas.

Por outro lado, o futebol também é palco de conciliações, de jogos que celebram a paz e mesmo jogos que celebram a vontade de nações de ganharem autonomia, como desafio a países maiores. A seleção Basca e a seleção Catalã, não reconhecidas pela Fifa, mas que anualmente realizam jogos para garantir a visibilidade de suas causas, ou a seleção do Tibet, que joga em desafio ao domínio chinês.

Mas a violência vista no Egito não foi religiosa e tampouco é reflexo de animosidades e diferenças insuperáveis entre duas torcidas, mas, como denunciam ativistas, jornalistas e especialistas, de um acerto de contas entre um regime militar e manifestantes pró-democracia.

Três jogadores do Al Ahly (Mohamed Aboutrika, Mohamed Barakat e Emad Moteab), chocados com os acontecimentos, decidiram se aposentar.

E a quem interessar possa, o resultado do jogo foi 3 a 1 para o Al-Masry.

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